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Investigação revela que pichações antissemitas em Paris são parte de campanha de desinformação russa

Em outubro de 2023, centenas de estrelas de Davi foram pichadas em Paris e região. Consideradas em princípio como um ato antissemita, atualmente, a pista privilegiada pela polícia é a de uma ampla tentativa de desestabilização da França pela Rússia, envolvendo uma vasta rede de sites de propagação de fake news. Uma investigação da Radio France publicada nesta sexta-feira (26) mostra as conexões entre as ações na região parisiense e o Kremlin.

A investigação sobre as Estrelas de Davi pintadas com spray na região de Paris em outubro passado está se afastando do ângulo antissemita. A operação foi parte de uma campanha de desinformação provavelmente orquestrada pela Rússia.
A investigação sobre as Estrelas de Davi pintadas com spray na região de Paris em outubro passado está se afastando do ângulo antissemita. A operação foi parte de uma campanha de desinformação provavelmente orquestrada pela Rússia. AFP - GEOFFROY VAN DER HASSELT
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De acordo com a investigação da Radio France, tudo começou com o alerta de uma testemunha que viu, na madrugada de 27 de outubro de 2023, no 10º distrito de Paris, uma "mulher e um homem vestidos de preto, com capuzes na cabeça como se estivessem de guarda perto de sua casa. A mulher tinha pintado várias estrelas com spray. O morador chamou a polícia e os dois  indivíduos foram detidos. Ainda de acordo com a testemunha, uma terceira pessoa tirou fotos das pichações. 

O casal, de nacionalidade moldava, foi colocado sob custódia policial. O homem e a mulher haviam chegado horas antes ao aeroporto de Beauvais, na periferia de Paris, vindo de Chisinau, capital da Moldávia. 

Ao constatar que estavam em situação irregular, a polícia colocou o casal em um centro de detenção e ordenou a sua expulsão. As cerca de dez estrelas que eles picharam foram apagadas rapidamente. Na época, a operação passou despercebida.

Mas três noites depois, uma segunda equipe pintou novas Estrelas de David, desta vez sem ser detida. Posteriormente, cerca de 250 pichações foram encontradas em três bairros de Paris (14º, 15º e 18º) e em várias cidades próximas (Saint-Ouen, Saint-Denis, Issy-les-Moulineaux, Fontenay-aux-Roses e Vanves). 

O caso causou grande comoção na mídia e nas redes sociais, que afirmaram que os desenhos eram manifestações antissemitas, registados na França e em todo o mundo, alguns dias depois do início da ofensiva terrestre de Israel em Gaza, após os ataques do Hamas em território israelense.

​Pouco depois, no entanto, a polícia revelou que vários elementos da investigação não correspondiam a um ato antissemita. 

“É uma operação atípica em comparação com outros atos antissemitas”, confidenciou o secretário de Segurança Pública de Paris, Laurent Nuñez, à BFMTV. 

A operação parecia muito bem organizada. Mais tarde, o Ministério Público de Paris descobriu que existiam ligações estreitas entre a primeira e a segunda equipe de pichadores. 

Nos vídeos das câmeras de vigilância gravados na segunda noite, um homem e uma mulher aparecem acompanhados de uma terceira pessoa. “Achamos que esta terceira pessoa era a mesma que acompanhou o primeiro casal”, explicou um porta-voz do Ministério Público, ao site da France Info, fazendo referência ao fotógrafo. 

De acordo com uma fonte próxima do caso, confirmando uma informação divulgada pelo jornal Libération, a segunda equipe conseguiu fugir para Bruxelas, de ônibus. As pessoas do segundo grupo também chegaram à França pelo aeroporto de Beauvais, vindas da Moldávia e, como o primeiro grupo, se hospedaram em um hotel no 9º distrito de Paris.

A investigação leva a polícia até Anatoli Prizenko, um moldavo que fala russo, de 50 anos, que assumiu a idealização do ato, mas disse que tinha a intenção de "apoiar os judeus". 

Mas uma apuração da France Inter mostrou que, em suas redes sociais, Prizenko tem um posicionamento pró-Rússia, assim como o homem que fazia parte da primeira equipe de pichadores, preso em Paris, Alexandre Cocii.  

Interferência digital russa

O novo elemento da investigação veio em 9 de novembro, quando o Ministério de Relações Exteriores francês denunciou uma interferência digital russa. Foram identificadas 1.095 contas falsas na plataforma X (ex-Twitter), que compartilharam 2.589 publicações ligadas às Estrelas de Davi pichadas em Paris, além das duas fotos tiradas durante a primeira operação, na madrugada de 27 de outubro. Tudo indicava, portanto, que os donos destas contas falsas foram informados, ou mesmo cúmplices, na operação de pichação.

A agência Virginum, que vigia ingerências estrangeiras na Internet francesa, acredita que as ações fazem parte de uma campanha digital muito maior de manipulação de informação, que chamou de RRN. As três letras foram escolhidas em referência ao site RRN.world. 

Amplamente promovido pelas contas falsas que publicaram as Estrelas de David, o site se apresenta como um meio de comunicação cujo conteúdo pró-Rússia critica o apoio ocidental à Ucrânia, acusando o regime ucraniano de ser neonazista. 

Este site foi registrado pela primeira vez na Rússia em março de 2022 com o nome Reliable Russian News, antes de mudar o nome no ano seguinte para Reliable Recent News. Ele publica em vários idiomas e tem suas próprias contas no Facebook, X e Telegram.

​No seu relatório publicado em junho de 2023, a Viginum identifica também 353 sites afiliados à RRN, cujos endereços foram promovidos por essas mesmas contas falsas nas redes sociais. Entre eles, encontramos sites que se apresentam como fontes confiáveis ​​de informação, é o caso de “Mapas Verdadeiros”, que lista as crianças mortas no Donbass, e “Tribunal Ucrânia”, que denuncia os crimes alegadamente cometidos pelo Exército ucraniano. 

Outros sites têm nomes franceses e compartilham o mesmo tipo informação, com linha pró-Rússia e anti-ucraniana. Ao procurar quem se escondia atrás deles, a Viginum identificou uma empresa russa, a IP Team, cujo nome já tinha aparecido numa investigação da revista francesa Marianne, publicada em junho de 2022. YouTubers franceses chegaram a ser abordados para transmitir propaganda russa e eurodeputados de extrema-direita foram entrevistados por estes sites.

Segundo Viginum, estes sites utilizam software de tradução automática, mas também contam com verdadeiros editores que falam francês, alguns dos quais trabalham dentro da União Europeia.

O RRN também cria falsas contas em redes sociais e publica links para sites que roubam a identidade de conhecidos veículos de comunicação ou de instituições públicas para legitimar seus discursos. Na França, jornais como Le Parisien, Le Figaro, Le Monde e Libération foram vítimas, além do Ministério do Interior alemão e o de Relações Exteriores francês. 

Ajuda da Meta para chegar ao Kremlin

Em dezembro de 2022, o grupo americano Meta (dono do Facebook, Instagram e WhatsApp) revela que duas empresas russas Struktura e ASP (Social Design Agency em inglês) gastaram US$ 105.000 em publicidade direcionada para divulgar seu conteúdo. 

A Struktura foi criada oficialmente em 2009 para vender ferramentas de TI. Possui mais de 500 “especialistas” em cinco cidades russas, incluindo Moscou e São Petersburgo. De acordo com uma análise de seu site, agora eliminado, seus clientes incluíam o Ministério do Interior russo, o governo de Moscou e a Assembleia Nacional russa.

Já a ASP foi criada em 2017 em Moscou. É uma empresa especializada em edição de vídeo, tradução e criação de sites. Na sua página web, ainda online, encontramos grande parte dos clientes da Struktura, incluindo instituições governamentais russas. Estas duas empresas foram acrescentadas à lista de entidades sancionadas pela União Europeia em julho de 2023, juntamente com seu diretor, Ilya Gambachidze, ex-conselheiro do vice-presidente do Parlamento russo.

Alguns dos conteúdos produzidos pela RRN foram promovidos pela rede diplomática russa fora do país, principalmente pela embaixada russa na França. 

Ela compartilhou um link para o site “War On Fakes” em 6 de março de 2022, logo no início da invasão da Ucrânia. “Esta conta continua a operar e a produzir desinformação todos os dias”, observa Alexandre Alaphilippe, diretor da Disinfo.eu, uma associação de Bruxelas que luta contra a manipulação de informação. “É persistente e resiliente", completa.

A verdadeira escala da operação de desinformação ainda é difícil de ser medida. Em dezembro de 2023, uma rede de contas falsas também foi desmantelada pelo TikTok. Milhares dos perfis eram novamente da Rússia. De acordo com a BBC e o think tank Digital Forensic Research Lab (DFRLab) do Atlantic Council, que revelou o caso, os vídeos postados foram vistos por dezenas de milhões de pessoas.

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