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Precariedade e solidão: estudantes brasileiras na França contam como vivem sob a pandemia

Sem fonte de renda por causa da pandemia, longe da família e com incertezas sobre o futuro acadêmico e pessoal, estudantes brasileiras na França contam como a crise sanitária da Covid-19 vem afetando suas vidas e como planejam celebrar (ou não) o Natal.

Voluntários da associação Secours Populaire Français distribuem alimentos e produtos de higiene para estudantes carentes, em frente à Universidade Paris VIII, em Saint-Denis, perto de Paris. Em 6 de maio de 2020.
Voluntários da associação Secours Populaire Français distribuem alimentos e produtos de higiene para estudantes carentes, em frente à Universidade Paris VIII, em Saint-Denis, perto de Paris. Em 6 de maio de 2020. AFP - THOMAS SAMSON
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“Com a pandemia, o que já era precário na corda bamba, se agravou demais, por vezes a corda estourou - quando eu peguei a Covid. O sentimento é de estar em queda livre, às vezes tendo que se equilibrar entre a saúde física, a barriga roncando, contas a pagar, e o psicológico abalado...”, conta Simone, estudante brasileira em Paris.

Precariedade, solidão, falta de dinheiro para comida e moradia, além da falta de empatia dos professores: estes foram os problemas mais relatados à reportagem da RFI. Por outro lado, muitas estudantes entrevistadas puderam ter o apoio de associações e de amigos, numa rede de solidariedade que se formou para dar assistência aos estudantes estrangeiros na França.

“O que já era instável, ficou ainda mais, de uma maneira nada saudável. Você precisa de uma mínima estabilidade para poder entrar nos estudos. Como você vai estudar, sem saber o que será de você no dia seguinte? Você não encontra estado de espírito, te tiram o chão. Então é uma pressão indescritível, abala tudo, o teu físico. E o teu psicológico, então, nem se fala”, desabafa Simone, de 43 anos, que cursa o segundo ano do mestrado em Análise das Artes e da Cultura, na Universidade Paris 8.

Para ela, a idade também é um problema. “Eu estou fora da curva, a minha idade não me permite ter uma bolsa de estudos francesa. Então também é bem difícil estar aqui enquanto caso particular”, explica.

Antes da pandemia, Simone se virava fazendo trabalhos que lhe permitissem conciliá-los com o mestrado, sua prioridade. “Nós, os estrangeiros, fazemos o trabalho que os franceses não fazem, 'trabalhos alimentares', e isso é a realidade, ponto final.  É um jogo necessário a se jogar”, diz ela, reconhecendo seu privilégio de ter um passaporte europeu, que lhe abre mais portas.

Contas fixas, pressão e trauma

O problema é, que com os lockdowns, os restaurantes fecharam, e quem não tinha contrato, como era o seu caso, ficou sem a ajuda do governo. Mesmo contando com outras ajudas governamentais, para pagar parte do aluguel, por exemplo, Simone não consegue pagar contas fixas, como um plano de internet ilimitada, que custa cerca de € 30 (aproximadamente R$ 186) por mês, e esbarra com a incompreensão de seus professores, que ameaçam de exclusão quem não deixar a câmera ligada nas aulas via Zoom.

“Quando nós fazemos esse tipo de trabalho da margem, nós estamos mais fragilizados, então estamos sujeitos a tudo. Eu, por exemplo, voltei a trabalhar em agosto, peguei a Covid em setembro, fiquei sem receber meus contra-cheques durante dois meses, isso fez com que a minha CAF (ajuda social do governo francês) fosse suspensa, e eu não pudesse receber nenhuma indenização pelo tempo de dispensa médica relativa à Covid. Isso me quebrou, fisicamente, eu ainda tenho dores fortes musculares. E a pressão que eu sofri me fragmentou, tirou meu foco para os estudos, enfim, eu estou até agora tentando respirar, me reerguer e me refazer do trauma”, conta Simone.

Diante de tantas dificuldades e da urgência das provas, Simone disse que não terá nem Natal nem Ano Novo. “Eu estou cansada, tenho zilhões de coisas pra estudar, e não vou fazer nada nas festas de fim do ano”, diz ela, que, apesar disso, se sente esperançosa, “saindo de uma turbulência”.

Nila Clara,  21, teve mais sorte. Ela também tinha um emprego “precário”, era babá antes do confinamento. “A família que me contrata como babá, por milagre, continuou me pagando o mês mesmo eu não indo, e isso me ajudou a pagar parte da comida”, conta ela, que estuda francês na Sorbonne, está em Paris há quatro meses, e não recebe nenhuma ajuda nem do governo francês nem de associações não-governamentais.

Trocas solidárias

Ela divide o apartamento com outra pessoa, o que a ajuda. “Quando eu não tinha dinheiro algum, ele comprou as coisas e fizemos uma troca, eu prepararia todas as comidas. Então fiquei responsável pela parte de cozinhar e limpar. Meu companheiro de casa tem me ajudado muito, estamos passando este momento juntos. E quando um não tem o outro completa, ele completa mais para mim do que eu para ele. Tem sido difícil tanto economicamente quanto psicologicamente”, confessa.

“Vou passar meu fim de ano com meu companheiro de casa, ele chamou um amigo dele. Vai ser bom e vai dar tudo certo”, acredita.

Para Ana, 30, que está no segundo ano do mestrado em Artes Plásticas na Universidade Paris 8, “o que mudou foi completamente tudo”. “Eu estava organizando um negócio próprio para trabalhar com turismo, estava tudo dando muito certo, eu estava com planos de levar as ideias para uma empresa de turismo ou virar empreendedora. Com a primeira onda tudo mudou de repente, eu tentei fazer grupos menores, mas já não havia turistas. Então comecei a procurar um emprego, mas também não conseguia”, relata.

Felizmente, diz ela, sua situação não é tão ruim assim, “pois eu moro com meu namorado, ele teve seu número de horas de trabalho reduzido, consequentemente o salário também, mas é o suficiente para pagar o aluguel, e fazemos extras para complementar, mas mesmo os trabalhos temporários ficaram difíceis de achar”.

Por não ter passaporte europeu, sua situação também não permite receber todas as ajudas do governo. “Pedi ajuda da universidade e da CAF pela primeira vez, já ajudou muito, mas, para eles, por ser estrangeira, não tenho direito nem a bolsa de estudos nem tive acesso à residência universitária, que tem aluguel mais barato”.

Dependência e depressão

O fato de morar com o namorado a ajuda, mas ela se sente desconfortável de depender dele. “Normalmente, em casa, dividíamos as despesas, mas já faz meses que ele paga todas as contas, eu me sentindo pressionada e estagnada, tive depressão pela primeira vez na vida. Fui a médicos e agora estou melhor. Minha pesquisa estagnou também, por causa da minha falta de motivação, mas também dos museus e bibliotecas fechadas. Deveria ser meu último ano universitário, mas provavelmente não vou conseguir terminar a pesquisa esse ano”, lamenta.

Ela diz que houve também muita solidariedade. “Recebi ajuda de amigos e da própria universidade, que nos enviou vales para compras e até caixas de alimentos, por meio da associação Secours populaire. Além disso, eu tive também tratamento psicológico pelo consulado brasileiro”, conta.

Ela diz que vai passar as festas de fim de ano com o namorado, “que me ‘carregou nas costas’ financeiramente e sentimentalmente”, e pretende retribuir à solidariedade que recebeu ajudando outros amigos estrangeiros que passarão as festas na França: “eles precisam de apoio emocional”.

Letícia, 26, faz mestrado em Ciências políticas na Universidade Sorbonne Paris Nord e está na França desde agosto de 2019. “Com a pandemia, tudo ficou mais complicado. No primeiro confinamento, eu era au pair e morava na casa da família que me acolhia. Foi uma época muito difícil, pois eles não me deixavam fazer nada, nem ir ao mercado, porque tinham medo que eu pegasse o vírus e passasse para as crianças, fora as dificuldades de ter uma rotina com todo mundo em casa”, lembra.

Em seguida, para continuar podendo pagar suas contas, Letícia foi trabalhar como garçonete. “Comecei a trabalhar num restaurante, num contrato que ia até o fim de setembro e depois iria continuar no restaurante só aos fins de semana, por causa das aulas do mestrado. Mas, em outubro, quando anunciaram o segundo lockdown, o restaurante fechou, e como eu não tinha mais contrato com eles, porque só estava trabalhando aos fins de semana, fiquei sem direito a nenhuma ajuda do governo”.

Distribuição de alimentos

“O mês de novembro ainda foi ok para pagar as contas, porque tinha um dinheiro guardado, mas dezembro foi complicado. Priorizei pagar meu aluguel com minhas economias e, para comidas, me beneficiei das distribuições de comidas gratuitas. Tentei achar trabalhos de babá, mas não achei”, diz ela, que divide apartamento com duas pessoas e se beneficia da ajuda de associações que distribuem alimentos para estudantes estrangeiros para poder se alimentar.

Mara, 43 anos, está na França desde 2015 e faz um mestrado em Turismo Cultural na Sorbonne Nouvelle. Como o setor de turismo foi um dos mais afetados, ela se viu em grandes dificuldades este ano. “Fiquei sem emprego, fiquei devendo vários meses de aluguel do quarto onde moro. Como não tenho fiador, não tenho contrato formal. Eu fiquei com medo de me mandarem embora no meio da pandemia. Falta dinheiro pra tudo”, desabafa.

“Eu não cheguei a passar fome, achei o aplicativo Hophopfood e busco doações de mercados perto de casa, foi realmente muita sorte", comemora.

"Financeiramente, eu não posso contar com ninguém, mas uma amiga minha me ajudou demais para eu ter um mínimo aqui, fez uma doação generosa num momento crítico. Minha mãe é aposentada brasileira, ela gostaria de ajudar mais, mas é complicado, até porque com essa cotação, um dinheiro que é muito pra ela, não vale muito aqui. Meu pai é artista e, se antes da pandemia já não era de ajudar, não vai ser agora, que ele está realmente sem trabalho nenhum, só aumentando as dívidas. Fora o dinheiro que os coitados de pai e mãe têm de gastar com a própria velhice no Brasil, né? E eu tenho 43 anos, eu que deveria estar ajudando eles”, diz, conformada.

"Sem clima para Natal"

Sobre o Natal, ela não fez plano algum. “Uma amiga até me chamou para ir à casa dela, mas nem tenho clima para sair de casa esse ano”.

"O que me salvou este ano foi que eu consegui um contrato no Petit Palais (museu de Paris) entre meio de julho e comecinho de novembro, e pude pagar as dívidas de aluguel do primeiro confinamento. Agora estou refazendo as dívidas", relata.

Além disso, Maíra se inquieta com o lugar onde vai morar a partir de março, quando a casa onde ela mora será entregue, e com a renovação do seu visto. “Eu só tenho visto de estudante, que tenho que renovar agora, mas não tenho como comprovar renda no momento. Espero que dê tudo certo, porque o fim mesmo seria voltar para o Brasil do apocalipse”.

(Algumas entrevistadas não quiseram se identificar, por foram usados nomes ou pseudônimos sem sobrenomes.)

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