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Os Miseráveis/ Oscar

“Não somos marginais”, dizem meninos de Montfermeil, cidade retratada no filme “Os Miseráveis”

Enquanto o governo brasileiro usa o aparato público para atacar a cineasta Petra Costa e seu filme, "Democracia em Vertigem", que concorre ao Oscar de Melhor Documentário, o prefeito de Montfermeil, subúrbio parisiense onde se passa o longa "Os Miseráveis", indicado na categoria Melhor Filme Estrangeiro, celebra o longa, ainda que ele não mostre a melhor face da sua cidade: "Estou orgulhoso. É um filme pulsante, justo e verdadeiro”.

Les Bosquets é o bairro de Montfermeil onde se passa o filme "Os Miseráveis", de Ladj Ly. Os conjuntos habitacionais na França são frequentemente vistos como "favelas verticais". Este da foto está vazio e vai ser demolido. Montfermeil, 07/02/2020.
Les Bosquets é o bairro de Montfermeil onde se passa o filme "Os Miseráveis", de Ladj Ly. Os conjuntos habitacionais na França são frequentemente vistos como "favelas verticais". Este da foto está vazio e vai ser demolido. Montfermeil, 07/02/2020. RFI/ Paloma Varón
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O conservador Xavier Lemoine, do Partido Cristão-Democrata (PCD), de direita, é prefeito de Montfermeil desde 2002 e adora contar a evolução da cidade de lá pra cá. Les Bosquets, o conjunto habitacional onde se passa o filme, por exemplo, não existe mais, diz ele, radiante. “Aqueles prédios foram demolidos, novos foram construídos e os moradores agora reencontraram a dignidade e o orgulho de morar aqui”, explica, dizendo que as mudanças são positivas e, espera, sustentáveis.

Antes, conta o prefeito, os imigrantes - na sua maioria negros e árabes - chegavam na França e iam morar em Les Bosquets, “mas saíam assim que conseguiam melhorar um pouquinho de vida”. “Ninguém queria ficar aqui. Hoje esta rotatividade acabou”, conta Lemoine.

O novo bairro Les Bosquets, em Montfermeil, no subúrbio parisiense. Os enormes conjuntos habitacionais deram espaço a prédios de, no máximo, quatro andares.
O novo bairro Les Bosquets, em Montfermeil, no subúrbio parisiense. Os enormes conjuntos habitacionais deram espaço a prédios de, no máximo, quatro andares. RFI/ Paloma Varón

"Favelas verticais"

Os conjuntos habitacionais nas periferias francesas, frequentemente definidos como “favelas verticais”, são vistos como guetos, quebradas perigosas onde não se entra sem ser convidado. Ladj Ly, o diretor do filme “Os Miseráveis”, chegou a Les Bosquets com um ano de idade e mora lá até hoje com sua mulher e três filhos, não muito longe de seus pais e irmãos. É esta a realidade que ela mostra no filme e que, como a reportagem da RFI pôde constatar, está mudando.

Dos prédios enormes onde moravam milhares de pessoas - entre 5.000 e 8.000, metade delas vivendo abaixo da linha da pobreza -, Les Bosquets se transformou em um bairro com ruas limpas e calmas, com prédios de no máximo quatro andares, um cenário muito diferente do que se vê no filme. “Apesar de Ladj Ly ser filho de Montfermeil, o filme foi realizado perto daqui, em Chêne Pointu, bairro de Clichy-sous-Bois, porque em Montfermeil não temos mais esta realidade”, comemora Lemoine.

“O filme mostra bem o que era Montfermeil há 15 anos. Uma Montfermeil que Ladj Ly conheceu bem e eu também”, indica o prefeito.

Parada de ônibus na avenida Victor Hugo, em Montfermeil. Ao fundo se vê o último conjunto habitacional a ser demolido em 2020.
Parada de ônibus na avenida Victor Hugo, em Montfermeil. Ao fundo se vê o último conjunto habitacional a ser demolido em 2020. RFI/ Paloma Varón

Capital do crime

Além de ter sido celebrizada pelo romance homônimo de Victor Hugo, que fez da cidade o lugar de encontro entre o protagonista Jean Valjean e Cosette indo buscar água numa fonte, Montfermeil, que conta hoje com 27 mil habitantes e nenhuma sala de cinema, é também conhecida pelos franceses como palco dos motins de 2005.

Esses distúrbios começaram em Clichy-sous-Bois após a morte de dois adolescentes em 27 de outubro de 2005, eletrocutados enquanto se escondiam em um transformador elétrico, para escapar de uma batida policial. Em seguida, o motim se estendeu por Montfermeil e por todo o departamento o Seine-Saint-Denis (o mais pobre do país), antes de tomar municípios de toda a França. Um estado de emergência foi decretado em 12 dias depois.

A barra pesou tanto, que, em 2006, Lemoine colocou em prática uma lei que proibia que três ou mais adolescentes de 15 a 18 andassem juntos em Montfermeil. A medida, polêmica, foi contestada pela esquerda e pelos juristas, e acabou derrubada cerca de um ano depois, por ser inconstitucional. Lemoine defende: “Foi uma medida de emergência. Você não sabe o que era isso aqui nesta época, éramos Chicago”, compara à cidade americana que já foi considerada “a capital do crime”.

A avenida Victor Hugo, em Montfermeil, cidade onde se passa parte do romance e o filme "Os Miseráveis".
A avenida Victor Hugo, em Montfermeil, cidade onde se passa parte do romance e o filme "Os Miseráveis". RFI/ Paloma Varón

Meninos de Montfermeil

Nascidos em sua maioria depois deste episódio, os amigos Alexandre e Reda têm 13 anos, Sacha, Adem e Anwar têm 14, e Jalal, 15. Eles moram em Les Bosquets, este bairro mal visto de Montfermeil, quase na divisa com Clichy-sous-Bois, e ainda sentem na pele a exclusão social do lugar: “As periferias não são sempre como se pensa, apenas com marginais, mas somos representados assim. A gente também tem festas de família e tudo isso”, diz Reda, 13.

“Eles nos consideram como marginais”, reclama Jalal, 15. "Eles quem?", pergunta a reportagem. “Todos os que não moram aqui, os burgueses, os parisienses”, explicam os meninos, em coro. Segundo eles, isso vem de muito antes do filme – que eles viram e adoraram. “A gente anda em grupo e usa as mesmas marcas, Nike e Adidas, e isso é visto como marginal, como ralé”, completa.

“As pessoas só veem o tráfico de drogas, mas aqui é calmo também”, completa Sacha, 14, mostrando as ruas efetivamente tranquilas numa tarde de sexta-feira de um dia ensolarado de inverno.

Almoçando um kebab numa lanchonete próxima, os amigos Robert e Jelan, ambos de 13 anos, têm a mesma opinião: “Nós moramos aqui e o mundo inteiro nos vê. Nossos amigos que fizeram o filme foram para os Estados Unidos, claro que estamos orgulhosos”, dizem, avisando que fazem teatro na escola e adorariam estar no casting de um próximo longa sobre Montfermeil.

No dia em que entraram em férias, na sexta-feira (7), os meninos disseram que não iam viajar. “Vamos ficar por aqui e fazer atividades no ginásio”. Contam que viajam nas férias de verão. No ano passado, um foi para a Suécia e o outro, para a Tunísia, onde têm família.

Em comum, estes adolescentes e o prefeito de Montfermeil têm o fato de estarem todos bastante orgulhosos de que a cidade deles esteja sendo vista pelo mundo inteiro. No caso de Lemoine, ainda pode ser um palanque para a sua reeleição: “Se o filme ganhar o Oscar, vai ter comemoração nas ruas de Monfermeil, sim. Ladj Ly e toda a equipe serão recebidos como se deve”, avisa.

Xavier Lemoine é prefeito de Montfermeil desde 2002. Em seu gabinete, ele exibe, orgulhoso, uma tapiceria com a assinatura de Victor Hugo, autor do livro "Os Miseráveis".
Xavier Lemoine é prefeito de Montfermeil desde 2002. Em seu gabinete, ele exibe, orgulhoso, uma tapiceria com a assinatura de Victor Hugo, autor do livro "Os Miseráveis". RFI/ Paloma Varón

*Como os adolescentes entrevistados são menores de idade, optamos por não colocar as fotos dos meninos.

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