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Annie Ernaux, Nobel de Literatura de 2022, de mestre da autobiografia impessoal a ícone feminista

Sua trajetória teve início nos anos 1970, em um momento em que a França estava em plena ebulição social e que o mundo da literatura ainda era dominado pelos homens. Nesses mais de 50 anos de carreira e em mais de 20 obras publicadas, Annie Ernaux expôs sua intimidade em relatos autobiográficos "entre a literatura, a sociologia e a história", tornando-se um ícone feminista e a voz dos injustiçados.

A escritora francesa Annie Ernaux foi recompensada com o prêmio Nobel da Literatura de 2022 nesta quinta-feira (6).
A escritora francesa Annie Ernaux foi recompensada com o prêmio Nobel da Literatura de 2022 nesta quinta-feira (6). AFP - JULIE SEBADELHA
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Daniella Franco, da redação da RFI

"Coragem" e "acuidade clínica" foram os termos utilizados pelo comitê do prêmio Nobel nesta quinta-feira (6) para definir a obra de Annie Ernaux, escritora francesa de 82 anos, 17a mulher a receber esse que é o considerado o maior prêmio literário do mundo. A recompensa, para ela, representa a "responsabilidade de testemunhar" e de promover "justiça em relação ao mundo".

Nascida em 1940 em Lillebonne, no noroeste da França, Ernaux é originária de uma família modesta. Na mercearia dos pais, um lugar "feio e imundo", segundo suas palavras, na região da Normandia, aprendeu desde cedo a estar atenta "a todos os tipos de conversas e linguagens". Foi lá que começou a tomar consciência das hierarquias sociais, mesmo as mais sutis, e as íntimas formas de dominação – aspectos descritos com maestria em seus livros.

"É verdade, eu sempre fui de esquerda e sempre pensei impulsionada pela injustiça social porque eu a vejo por tudo", disse Annie Ernaux, em uma entrevista à RFI em maio deste ano. Para ela, atualmente, é prioritário reafirmar o combate feminista. "Os direitos e a existência da mulher são questões que atravessam o mundo desde que ele existe. Evoluímos nos últimos tempos, mas estamos ainda longe de alcançar a igualdade", reiterou. 

Por esse tipo de posicionamento, Ernaux não é apenas ovacionada no meio da literatura, mas é também um dos grandes ícones feministas da França. Relatos de sua experiência ao realizar um aborto clandestino em duas de suas obras, "Les Armoires Vides" (Os Armários Vazios), de 1974, e "L'Événement" (O Acontecimento), publicado em 2000, são considerados como grandes manifestos contra uma sociedade machista e cruel que a francesa vivenciou e viu evoluir lentamente.

Não é à toa que Ernaux se classifica como "uma mulher que escreve". Inspirada na obra do sociólogo francês Pierre Bourdieu e grande admiradora de Simone de Beauvoir, a autora aprendeu a dissecar o mal-estar social, a dominação de classes e as relações amorosas, temas frequentemente abordados em seus livros. Abusando dessa habilidade, no premiado "Les Années" (Os Anos), publicado em 2008 e considerado seu chef-d'oeuvre, ela resgata suas memórias do pós-guerra, com fotos e recordações que marcaram sua existência. Em seu mais novo livro, "Le Jeune Homme", lançado em maio deste ano, ainda sem tradução em português, Ernaux relata, em primeira pessoa, o romance com um estudante 30 anos mais jovem que ela, nos anos 1990.

A ascensão pela Literatura

Na adolescência, Ernaux dá início à separação do universo humilde e popular do interior da França, destacando-se nos estudos. Após obter um diploma em Letras Modernas, torna-se professora de francês, em 1971. Três anos depois, publica seu primeiro livro, "Les Armoires Vides" (Os Armários Vazios), e dá sequência à carreira acadêmica na Universidade de Cergy-Pontoise, na periferia de Paris. 

Em "La Femme Gelée" ("Uma Mulher Congelada"), publicado em 1981, trata da aterrissagem no mundo burguês por meio de seu primeiro casamento. Verdadeiro protesto contra a vida doméstica, a escritora retrata a involuntária ascensão de classe e a alienação imposta pela sociedade às mulheres da época, uma tensão alimentada de culpa, vergonha e arrependimento –sentimentos que jamais escondeu ao abordar essas memórias.

Após os nascimento dos dois filhos, Ernaux se divorcia e publica "La Place" (O Lugar), pelo qual recebe o prestigioso prêmio francês de literatura Renaudot, em 1984. A obra, uma autosociobiografia que resgata memórias de infância de maneira fragmentada, foi escrita para aceitar a dor pela morte do pai, segundo a autora. No livro seguinte, "Une Femme" (Uma Mulher), publicado em 1987, a escritora revela as diferentes facetas da relação com a mãe.

A universalidade da existência

O estilo clínico e direto, desnudo de qualquer lirismo, intriga os críticos literários de todo o mundo. Para muitos, Ernaux engloba a universalidade da existência com os relatos únicos de sua intimidade. Através das "contradições da experiência social, descrevendo a vergonha, a humilhação, a inveja ou a incapacidade de vermos quem somos, Ernaux cumpre algo admirável que se inscreve no tempo", definiu Anders Olsson, integrante da Academia Sueca, ao conceder o Nobel da Literatura à francesa nesta quinta-feira. 

O prêmio arrancou elogios de diversas personalidades francesas, como o presidente Emmanuel Macron, para quem Ernaux é "a voz", segundo ele, "da liberdade das mulheres e dos esquecidos". "Annie Ernaux escreve, há 50 anos, o romance da memória coletiva e íntima de nosso país", afirmou no Twitter.

Prova da dessa universalidade dos relatos da escritora é o sucesso que sua obra encontra pelo mundo. O filme "O Acontecimento", baseado no livro homônimo de Ernaux e dirigido pela franco-libanesa Audrey Diwane, vencedor do Leão de Ouro de melhor filme no Festival de Veneza em 2021, foi um dos destaques da edição de 2022 do Festival Varilux de Cinema Francês no Brasil.

O documentário "Os Anos do Super-8" dirigido pela autora com o filho David Ernaux-Briot, será exibido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo neste mês. Ernaux também é uma das atrações confirmadas da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), entre os dias 23 e 27 de novembro.

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