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Conflito Israel-Hamas: os defensores da paz ainda têm voz?

Com a iminência de uma intervenção militar terrestre israelense em Gaza, organizações heterogêneas reunidas no chamado “campo da paz” correm o risco de se tornarem inaudíveis em sua defesa ​de diálogo genuíno entre israelenses e palestinos. No entanto, se não houver tempo para negociações, “teremos de reaprender a conviver com os nossos vizinhos”, alertam esses ativistas.

Um soldado israelense segura um fuzil durante um comício do movimento Peace Now, em 11 de maio de 2007, que pedia uma solução de dois estados. Durante muitos anos, a voz da paz pareceu inaudível, mas continua viva, garantem ativistas.
Um soldado israelense segura um fuzil durante um comício do movimento Peace Now, em 11 de maio de 2007, que pedia uma solução de dois estados. Durante muitos anos, a voz da paz pareceu inaudível, mas continua viva, garantem ativistas. ASSOCIATED PRESS - KEVIN FRAYER
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Géraud Bosman-Delzons, da RFI

Os massacres sem precedentes contra 1,3 mil civis israelenses, perpetrados por militantes do Hamas, assim como os mais de 2.215 mortos entre a população de Gaza, na resposta militar de Israel, são resultado de uma tragédia contínua. Nesse momento, muitos se perguntam se a voz da paz ainda pode ser ouvida.

Uma semana após a operação dos comandos extremistas, israelenses e a diáspora judaica ainda estão chocados. “Coisas impensáveis” aconteceram no sábado (7), afirma Alain Rozenkier, presidente da Paz Agora na França, a associação independente israelita. “Acontecimentos inconcebíveis: uma penetração tão fácil, atravessar uma fronteira tão segura”, ele diz. “É impensável também em termos da abominação dos atos praticados”, acrescenta, conduzindo a “uma catástrofe humanitária e política, tanto para os israelenses como para os palestinos, uma vez que a população civil pagará o preço pelos crimes do Hamas”.

Neste contexto, “paz é uma palavra totalmente descabida, disso sabemos bem”, admite o ativista. Mas “esta reação por si só não será suficiente. Será preciso adotar uma abordagem global com atos políticos. Uma situação de guerra termina sempre numa paz mais ou menos estável. Não pode ser de outra forma, a menos que admitamos que um dos dois lados desapareça completamente, o que é inimaginável. Teremos de correr o risco de tentar a paz”, salienta.

Como se organiza o campo da paz?

Quanto tempo se passou desde que a palavra paz se referia a um horizonte alcançável, graças a um amplo desejo social e político? Era o que ilustravam as gigantescas manifestações de várias centenas de milhares de pessoas nas décadas de 1970 e 1980 – como as convocadas por 378 oficiais em 1978 para concluir a paz com o Egito. Também o nascimento, em 1992, do Meretz, partido histórico da esquerda secular e tradução política do movimento social pacifista, que ingressou no Parlamento israelense (Knesset). Ou ainda o aperto de mão entre Yitzhak Rabin et Yasser Arafat em frente à Casa Branca.

Também foi durante um gigantesco encontro da Paz Agora (Shalom Arshav), movimento de referência histórica, que o assassinato de Yitzak Rabin, em novembro de 1995, por um extremista judeu, abalou a dinâmica diplomática. Mas se as esperanças não morreram com o Prêmio Nobel da Paz, a segunda Intifada (2000-2005) selou o fim do processo de Oslo.

Ao mesmo tempo, o Hamas, uma organização islâmica criada em 1987 e que se opunha aos Acordos de Oslo, que deveriam garantir o reconhecimento de Israel por um futuro Estado palestino, viu a sua influência crescer graças à condescendência dos governos de Ariel Sharon e depois de Benjamin Netanyahu, enquanto os partidos Fatah e a OLP eram gradualmente enfraquecidos e desacreditados.

“Permitimos o surgimento de um monstro: o Hamas foi nutrido e hoje se volta contra nós”, lamenta David Ben Ishay, cofundador do coletivo dos Democratas Moderados.

Para Samy Cohen, pesquisador emérito da Sciences Po em Paris, se a paz estiver ligada à causa palestina, “é impopular desde o início”. “Os palestinos são vistos como uma ameaça à segurança de Israel. A OLP e Arafat, derrotados no Líbano em 1982, não renunciaram à destruição do Estado de Israel […]. A central palestina só falou do reconhecimento de Israel a partir de 1989", destaca o especialista em pacificação.

'Paz nunca'

Lior Amihai, diretor do movimento Shalom Arshav (Paz Agora em Israel), descarta a teoria de um declínio do movimento, após a segunda Intifada: "na verdade , a paz nunca foi realmente tentada. Sempre houve ciclos de violência e ações tomadas, pelo Hamas ou pelos governos israelenses, para minar qualquer esperança de um acordo de paz sincero a favor de uma solução de dois Estados. Mas deveríamos escolher a paz, porque não há alternativas para o nosso futuro”, diz.

Hoje, “o campo da paz é aquele que continua a dizer que a ocupação é a gangrena da sociedade israelita, por razões éticas, mas também para a preservação de Israel como um Estado democrático”, analisa o pesquisador David Ben Ishay.

Além de gerar forte rejeição na população, que vai da crítica ao verdadeiro ódio, este mosaico de pensadores da paz não compartilha as mesmas sensibilidades sobre os rumos a tomar. Mas a divisão nunca foi o principal problema do movimento, acrescenta o historiador da Universidade Hebraica de Jerusalém Arnon Dgani, pesquisador do Centro para a Renovação da Democracia Israelense: “O principal obstáculo ao acesso ao poder do campo da paz é que a questão não está na agenda política. A luta pela paz é vista pela direita e por alguns fragmentos da esquerda como inútil e até perigosa”, explica.

Na falta de fortes relações políticas, estas ONG têm dificuldade de transformar teoria em ação. Pela primeira vez desde a sua criação, “o único partido que defende o processo de paz, o Meretz, nem sequer ultrapassou o limiar de elegibilidade nas últimas eleições legislativas, ou seja, 140 mil votos”, lembra David Ben Ishay. “A voz do pacifismo não é ouvida há vários anos, por um lado porque houve erros cometidos por este movimento, em termos de organização. Mas também porque o lado palestino não conseguiu estruturar um discurso alternativo à violência, ao discurso do Hamas”, acrescenta Alain Rozenkier.

A vitalidade da sociedade civil israelense

“A questão do processo de paz estava morta e enterrada. Os Acordos de Oslo, cujo 30º aniversário foi comemorado este ano, geraram apenas três programas televisivos. Com o que vivemos, provavelmente as pessoas ficarão ainda mais afastadas”, continua David Ben Ishay, do coletivo Democratas Moderados, criado em março de 2020 para se opor ao poder do primeiro-ministro Benyamin Netanyahu.

A trajetória da política nacional em Israel tem muito a ver com a diminuição da influência do movimento pacifista. “Tal como na Europa, a sociedade israelense atravessa uma evolução democrática em direção a potências nacionalistas”, resume Alain Rozenkier. À medida em que a política e a sociedade israelitas se tornam ideologicamente mais de direita – a figura do partido conservador nacional Likud, Benyamin Netanyahu, é chefe do governo de 2009 a 2019, e depois a partir de 2021 –, o campo da paz muda seu foco para preocupações internas sobre “preservar a democracia”, observa.

O ano de 2023 marca de fato o despertar da vitalidade cívica israelita. A partir de 4 de janeiro, a coligação de extrema direita no poder desde novembro lança um projeto de reforma judicial que visa limitar os poderes do Supremo Tribunal, o único contrapoder real num Estado sem Constituição. Sem ela, o legislador e o governo teriam carta branca para reformas, abrindo uma via para a continuidade das colonizações.

As organizações de cidadãos se mobilizam, lideradas pelas elites sociais israelitas e engrossadas pela classe média. Por outro lado, “aqueles que estão nas colônias, aqueles que são muito religiosos ou de direita, apoiam a reforma”, explica Denis Charbit, professor de ciência política na faculdade de Ciências Humanas da Universidade Aberta de Israel.

Num comunicado de imprensa divulgado em março de 2023, citado pelo jornal Libération, duas associações judaicas na diáspora (JCall, a rede judaica europeia para Israel e para a paz, e o CCLJ, o Centro Comunitário Secular Judaico), escrevem: “Em 2010, lançamos um ‘Apelo à Razão’ para expressar a nossa preocupação com o estagnação do processo de paz e as ameaças para a própria sobrevivência de Israel como um Estado judeu e democrático. Treze anos depois, as nossas piores previsões materializam-se diante dos nossos olhos e a preocupação se transformou em angústia. A coligação de extrema direita resultante das eleições de 1° de Novembro [de 2022] destrói não só qualquer possibilidade de resolução do conflito israelo-palestiniano, mas também os próprios fundamentos do Estado de direito israelita. O que os sabotadores não previram foi a força da reação da sociedade civil".

Durante 40 semanas, manifestações em massa desafiaram o governo. “Logo no início do movimento, vimos bandeiras palestinas nas manifestações”, recorda David Ben Ishay que, como “homem de esquerda”, participou no protesto. “Foi muito diversificado. Mas começamos a receber críticas na televisão israelense, éramos vistos como traidores. Contudo, defender os fundamentos democráticos significa defender instituições capazes de, posteriormente, retomar o processo de paz. Mas este não era o cerne do movimento de protesto porque teria sido inaudível”, resume.

O clímax foi alcançado em 25 de março, quando o ministro da Defesa, Yoav Gallant, na noite de uma mobilização de mais de meio milhão de pessoas no país, defendeu a suspensão do projeto. Sua demissão foi anunciada no dia seguinte (mas não seria ratificada). Até o presidente de Israel – uma posição honorária – pediu a Benjamin Netanyahu “que parasse imediatamente o processo legislativo”.

“O campo da paz é menor do que o da luta pela democracia, mas há linhas paralelas”, observa Yuval Rahamim, antigo presidente da ONG Fórum para a Paz, que reúne mais de uma centena de associações que trabalham no conflito israelo-palestino. “Não foi a voz da paz que desapareceu ou enfraqueceu, foi a população que mudou”, continua Yuval Rahamim. “Nas décadas de 1960 e 1970, quando eu era pequeno, falávamos o tempo todo sobre paz na escola. 'Tenha paz' era o lema nacional. Em 20 anos, todo o sistema educativo mudou, capturado pela direita. Este não é mais o discurso”, compara. “Mas a vingança não traz nada. A única maneira de proteger os nossos entes queridos é acabar com este conflito”, completa.

Abandonada pela comunidade internacional, desprezada pelas novas gerações de líderes dos países árabes, particularmente do Golfo, minados pelo ex-presidente americano Donald Trump, a causa palestina virou um dossiê colocado embaixo da pilha. “Durante anos, a sociedade israelita teve a impressão de que poderia ter as duas coisas: os territórios, a calma relativa, o desenvolvimento. Não queríamos ver os palestinos, podíamos ignorar o problema e administrar o conflito em vez de resolvê-lo. O que acaba de acontecer de forma muito dolorosa mostra o contrário. É o fracasso de um conceito simples de gestão de conflitos”, analisa Alain Rozenkier.

Para Alain Rozenkier, “não erradicaremos completamente o Hamas, ele continuará a existir, mas espero que haja um enfraquecimento considerável. Mas o que virá em vez disso? Uma Autoridade Palestina em decadência, que não tem o respeito e a aura que deveria ter entre a população? Mahmoud Abbas chegando no final da linha?”, pergunta. Nos territórios ocupados da Cisjordânia, o campo político também está em ruínas.

Lior Amihai, da Paz Agora, vê “três missões imediatas para a paz ”: “a primeira é pressionar o governo para obter a libertação dos diversos reféns nas mãos do Hamas. Devemos continuar a divulgar a análise – agora partilhada por muitos, penso eu – de que a razão pela qual estamos aqui é que Israel preferiu pagar ao Hamas para se estabelecer em Gaza em detrimento das vozes moderadas da OLP porque queria destruir a ideia de um estado palestino. E por fim, a operação militar deve ser acompanhada por uma agenda política a favor dos direitos dos palestinos a um Estado e à autodeterminação”, lista.

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