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"Povo iraniano está determinado a por fim ao regime religioso despótico", disse Nobel da Paz em entrevista exclusiva

Jornalista iraniana e ativista dos direitos humanos, detida na prisão de Evin, em Teerã, Narges Mohammadi, 51 anos, não hesita em denunciar os abusos do regime islâmico, mesmo de sua cela. Vencedora de vários prêmios internacionais, incluindo o Prêmio Mundial para a Liberdade de Imprensa (2023), o Prêmio Olof-Palme para os Direitos Humanos (2023) e o Prêmio Sakharov (2018), antes de vencer o Nobel da Paz nesta sexta-feira (6), ela respondeu por escrito a perguntas da RFI.

A ativista iraniana de direitos humanos Narges Mohammadi, posa nesta foto sem data. Fotos do arquivo da família Mohammadi
A ativista iraniana de direitos humanos Narges Mohammadi, posa nesta foto sem data. Fotos do arquivo da família Mohammadi via REUTERS - MOHAMMADI FAMILY ARCHIVE PHOTOS
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A entrevista exclusiva foi feita em julho, quando ela já estava presa. Leia abaixo os principais trechos.

RFI: Como você passa os dias na prisão?

Narges Mohammadi: Obviamente, as quatro paredes frias e duras da prisão e a distância e a privação de ver os meus filhos, Kiana e Ali, além do meu pai que já está velho e doente, roubaram algumas das belezas e prazeres da minha vida. Às vezes, quando vejo um pardal ou uma borboleta circulando no pátio da prisão, penso na doçura e na beleza de Kiana. E uma flor me mergulha na memória da minha doce Ali.

Canto para eles e reavivo em minha mente a esperança de um futuro encontro. As famílias das outras mulheres presas vêm ver os seus entes queridos na prisão todos os domingos. As mães presidiárias podem falar ao telefone com os filhos de sábado a quarta-feira. Eu ouço as palavras “minha querida menina”, “meu querido menino” que voam no ar, me deixo levar e continuo sonhando acordada.

Sofrer com o vazio, a carência, a privação e o estranhamento é difícil. Acredito que a palavra “difícil” é demasiadamente fraca e não pode explicar esta situação. Mas, pelos seus ideais e pelos seus objetivos, o ser humano é capaz de aceitar todo o sofrimento e, apesar dele, despertar, experimentar e difundir a esperança e a paixão para dar sentido e brilho à sua vida.

A vida na prisão é para mim uma forma e manifestação específica da vida. Estou muito confiante e continuo ativa. Durante a semana, organizamos diversos programas: leitura, esporte, exibição de filmes, encontros sobre feminismo, análise da atualidade. Às vezes, comemoramos um aniversário, fazemos uma festa, cantamos e dançamos.

Continuo minhas investigações sobre “tortura branca” e “celas solitárias”. Parte dos meus esforços em matéria de direitos humanos é dedicada à questão da violação, agressão e violência sexual contra mulheres manifestantes e contra aqueles que se opõem ao regime, cometidas por agentes do Estado. Estou lendo o livro de Hank Johnston "O que é um movimento social?". Ele nos permite compreender melhor o movimento “Mulher, Vida, Liberdade” e compreender os seus pontos fortes e fracos, de uma forma mais informada.

Meu tempo na prisão está tomado. Os dias terminam muito rápido e passo a noite na esperança de ver o amanhecer.

O movimento “Mulher, Vida, Liberdade” mudou o moral dos presos? Teve algum impacto na atitude dos guardas?

Penso que o movimento “Mulher, Vida, Liberdade” modificou profundamente todos os aspectos da vida individual e social dentro das forças e movimentos sociais, políticos, culturais e até religiosos. O atual movimento revolucionário foi suficientemente forte para transformar o panorama das forças políticas e sociais, permitindo à sociedade evoluir para uma nova situação irreversível, diferente do passado, em que evoluíram as bases intelectuais e as orientações socioculturais, não só no que diz respeito aos direitos das mulheres, mas também em relação ao poder político, à sociedade, à cultura, às tradições e à religião. Este movimento colocou as mulheres numa posição de força decisiva, vanguardista e radical.

Agora, as mulheres ganharam o poder de obrigar a sociedade a estar atenta às questões de violência, repressão, submissão e dominação contra as mulheres e a trabalhar para reconhecer os seus direitos como a chave para alcançar a democracia, a liberdade e a igualdade.

Este movimento é o resultado dos esforços de mulheres, incluindo presas políticas e de consciência, que estão atualmente presas, em regime de isolamento e sofrendo tortura física, psicológica e sexual. Temos uma sensação incomparável de profunda satisfação.

Sinto que aquilo por que lutei e perdi o meu emprego, os meus recursos, a minha vida e, de certa forma, os meus filhos, está agora ao meu alcance. Procuro contribuir para uma mudança profunda na sociedade.

O papel do “povo” em mudanças fundamentais e duradouras para estabelecer a liberdade, a democracia e a igualdade é crucial. Durante 29 anos de luta social, aprendi a não negligenciar a influência de outros fatores como o poder político, a ordem internacional, a influência de países estrangeiros, a situação econômica. Mas é claro que o progresso cultural, o acesso à opinião e a vontade de mudança são fatores determinantes. Isto é o que facilmente vemos no movimento “Mulheres, Vida, Liberdade”.

Num processo contra mim no Primeiro Tribunal Revolucionário de Teerã, em 2016, fui condenada a 16 anos de prisão. Uma das minhas acusações era a de ter atividades feministas e, como prova, citaram a minha oposição à poligamia masculina. Além disso, apresentaram uma foto minha, copiada nas redes sociais, onde havia escrito na palma da mão “véu obrigatório = violência contra a mulher”. O tribunal concluiu que a manifestação era contra o Alcorão e a religião sagrada.

Mais hoje, fica claro no Irã que o véu obrigatório é uma violência contra as mulheres. Matar Mahsa Amini porque ela não estava usando devidamente o véu não constitui violência por parte dos que estão no poder?

Hoje, a consciência do povo sobre a opressão exercida pelos que estão no poder contra as mulheres, ao lhes impor a obrigatoriedade do uso de véus, estabelecendo leis injustas, encorajando a cultura patriarcal, é um progresso, mesmo se o regime tenta reprimir esta evolução e esta esperança, na tentativa de manter o seu poder fantoche e frágil.

Nós, as mulheres presas, apoiamos o movimento “Mulher, Vida, Liberdade” e estamos orgulhosas do que está acontecendo nas ruas das nossas cidades no Irã. Os carcereiros estão impressionados com este movimento e alguns deles me disseram que seus filhos aderiram.

Você continua suas ações a pratir da prisão: a carta a Vaclav Balek, presidente do Conselho de Direitos Humanos da ONU para protestar contra a nomeação da República Islâmica para a presidência do Fórum Social para os Direitos Humanos da ONU, a carta à União Europeia para denunciar a situação dos presos, comunicados à imprensa. Estas ações não a colocam ainda mais em perigo? Como as autoridades veem as suas ações?

Em 10 meses, o Ministério Público de Evin iniciou cinco processos contra mim, um dos quais está atualmente pendente na seção 29 do tribunal revolucionário. Nesse período, recebi 11 intimações e advertências.

Por ter manifestado e transmitido, em maio de 2022, uma opinião de protesto durante o meu encarceramento na prisão de Qarchak, fui condenada a 15 meses de prisão e quatro meses de “limpeza de ruas”, à disposição da Câmara Municipal de Teerã.

A maioria dos seus companheiros de prisão são presos políticos. O que eles acham de suas ações?

Os meus colegas presos são presos políticos e por expressarem sua opinião, estão presos há anos e, na maioria das vezes, aprovam e apoiam as atividades de protesto organizadas dentro da prisão. Dada a continuação da política de repressão do regime, alguns deles manifestam a sua preocupação por verem desaparecer qualquer medida de libertação em relação a mim.

Como a nomeação da República Islâmica do Irã para a presidência do Fórum Social da ONU para os Direitos Humanos foi recebida na prisão? 

Através de uma carta aberta, expressei a convicção de que a nomeação da República Islâmica do Irã para a presidência do Fórum Social do Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas acarreta contradições, desespero e ambiguidades fundamentais. Este regime repressivo e violento parte da violação flagrante e manifesta dos direitos humanos, mas obtém a presidência de um fórum global cujo objetivo é promover os direitos humanos no mundo.

Para mim, ativista dos direitos humanos condenada a 32 anos de prisão e a 154 chibatadas durante seis julgamentos, esta designação constitui, do ponto de vista político, um erro estratégico que acentua o poder de um “regime religioso despótico”. e misógino” e enfraquece a credibilidade das Nações Unidas e do Conselho dos Direitos Humanos. Representa, também, uma traição aos direitos humanos e os esvazia de qualquer conteúdo desenvolvido sobre as bases filosóficas do “direito” e do “homem” e torna-os um repugnante instrumento de hipocrisia.

Quando a notícia desta designação chegou até nós, um dos meus companheiros de prisão perguntou-me: qual é o sentido de “você desperdiçar a sua vida para defender a Declaração dos Direitos Humanos?” Para ela, não havia qualquer justificativa possível para esta decisão do Conselho dos Direitos Humanos, no momento em que um regime notório pela violação destes direitos reprimia o movimento em curso pelo estabelecimento da democracia e das liberdades.

Tenho orgulho das minhas lutas em defesa dos direitos humanos, mas tenho vergonha da decisão do Conselho dos Direitos Humanos.

Como você vê o futuro do movimento “Mulher, Vida, Liberdade”, que foi reprimido de forma sangrenta?

O movimento revolucionário e a cadeia de protestos sociais atuais no Irã se apoiam sobre forças internas ricas em experiências históricas dos últimos 150 anos. Este movimento é vasto, o seu fundamento doutrinário é progressivo e as suas ações são criativas, plurais e ininterruptas. Mas, para atingir os seus objetivos, necessita da atenção e do apoio da comunidade internacional.

O povo iraniano está tentando construir uma sociedade civil estável, sem a qual o estabelecimento da democracia e, especialmente, a sua viabilidade e persistência, não parece ser alcançável.

O povo iraniano está determinado a por fim ao atual regime religioso despótico. Esta visão, fruto de lutas históricas, é irreversível. Estou otimista quanto ao futuro deste movimento.

O que você espera da comunidade internacional, dos iranianos que não estão na prisão e daqueles que vivem no exterior?

Os protestos e movimentos sociais no Irã devem ser considerados pela comunidade internacional. A sociedade iraniana procura mudanças com amplas exigências políticas, sociais e econômicas. Os especialistas em movimentos sociais são unânimes em afirmar que o fortalecimento das organizações da sociedade civil constitui a pedra angular da mobilização. Este constitui um dos objetivos das forças sociais no Irã.

Ao mesmo tempo, a maior atenção dos meios de comunicação internacionais para o que está a acontecer no Irã, a mobilização das instituições internacionais de defesa dos direitos, a intervenção das Nações Unidas, o envolvimento dos países ocidentais para conseguir que o regime islâmico ponha fim à repressão dos ativistas da sociedade civil e a libertação de presos políticos e prisioneiros de consciência terão um impacto significativo na continuidade do movimento.

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