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Visitas a campo de concentração de Auschwitz viram arma contra negacionismo dos horrores nazistas

Na França, um candidato da extrema direita às eleições presidenciais deseja "reabilitar" o regime de Vichy, famoso por ter colaborado com Adolf Hitler, deportando milhares de franceses para os "campos da morte". No Brasil, números divulgados pela antropóloga Adriana Dias repertoriam 527 grupos neonazistas, setor que parece em plena expansão. Para conter o negacionismo histórico, o Memorial do Holocausto de Paris organizou uma visita a Auschwitz nos 80 anos da 1ª deportação de judeus franceses. 

O campo de concentração de Auschwitz II-Birkenau no arredores de Cracóvia, na Polônia, ficou conhecido pela "industrialização da morte", como o processo de extermínio em massa ficou conhecido sob o regime nazista.
O campo de concentração de Auschwitz II-Birkenau no arredores de Cracóvia, na Polônia, ficou conhecido pela "industrialização da morte", como o processo de extermínio em massa ficou conhecido sob o regime nazista. © Márcia Bechara/ RFI
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Aconteceu uma vez, portanto pode acontecer de novo: este é o cerne do que temos a dizer. (Primo Levi, ensaísta italiano e sobrevivente do Holocausto)

Márcia Bechara, enviada especial a Auschwitz-Birkenau

A comitiva de mais de 100 pessoas, dividida em três grupos, começa a tomar contato com a via crucis de judeus, homossexuais, resistentes, ciganos, portadores de deficiência sob o regime nazista, numa encruzilhada de antigos trilhos de trens. Um caminho bucólico, quase parnasiano. "Poderíamos facilmente imaginar cenários rurais, com vacas e crianças correndo pelos campos", lembra, entre estupefação e certa melancolia, o cineasta Claude Lelouch, monstro sagrado do cinema francês, que aos 84 anos decidiu ver "de perto", nesta viagem organizada pelo Memorial do Holocausto de Paris, a "expressão máxima dos horrores nazistas" nos campos de extermínio do complexo de Auschwitz-Birkenau. O cineasta relatou em detalhes à imprensa francesa em 2020 o momento em que ele, ainda criança de colo, e sua mãe, foram perseguidos pela Gestapo em Nice, no sul da França.

Lelouch, que revelou à RFI que prepara um filme que se passa durante a Segunda Guerra, disse que precisava ir ao local "para medir a que ponto o horror atingiu picos realmente inacreditáveis". "É verdade que é preciso falar disso aos jovens, de tempos em tempos, porque esse tipo de coisa não pode se reproduzir nunca mais", diz o cineasta, que dirigiu Jean-Paul Belmondo em "Os Miseráveis".

"É importante que os jovens de hoje saibam que, se eles têm direito liberdade, é porque homens e mulheres lutaram por essa liberdade, e sofreram o pior do pior. É fácil dizer isso desse jeito. Mas quando temos a possibilidade de vir no lugar onde se passaram os piores horrores da História, compreendemos melhor a História", resume Lelouch, que acompanhou - e filmou - boa parte do trajeto, explicado em detalhes pelos historiadores do Memorial do Holocausto de Paris.

Na velha encruzilhada, duas placas de metal assinalam a "judenrampe", o local onde a maior parte dos 500.000 deportados judeus desembarcaram entre junho de 1942 e maio de 1944. Entre eles, morreram nos campos de Auschiwtz I e Auschiwtz II-Birkenau nada menos que 63.000 judeus franceses, incluindo 10 mil crianças.

O Memorial do Holocausto de Paris marca a data de 27 de março de 2022 como os 80 anos da primeira deportação de judeus franceses para os campos nazistas na Alemanha e na Polônia, com essa série histórica de visitas aos campos de extermínio nos arredores de Cracóvia, cidade situada na rica região de minas e carvão de Silésia, no sul da Polônia. Ao todo foram 62 "comboios da morte" enviados para Auschwitz.

A entrada principal com a inscrição "Arbeit macht frei" (em português: "O trabalho liberta") na entrada do campo de extermínio nazista alemão de Auschwitz, em Cracóvia, na Polônia.
A entrada principal com a inscrição "Arbeit macht frei" (em português: "O trabalho liberta") na entrada do campo de extermínio nazista alemão de Auschwitz, em Cracóvia, na Polônia. AFP/Archivos

Naquela encruzilhada ferroviária acontecia a famosa "triagem" do campo de Auschwitz. Velhos, mulheres grávidas, crianças e portadores de deficiência partiam direto para as câmeras de gás, onde eram mortos com cristais de Zyklon B, um pesticida à base de ácido cianídrico patenteado pelo químico Walter Heerdt (ex-colaborador de Fritz Haber) e produzido pela empresa alemã Degesch.

Durante a Segunda Guerra Mundial, os nazistas fizeram nas câmaras de gás dos centros de extermínio os primeiros "testes" com o gás mortal, realizados no bloco 11 de Auschwitz I sobre prisioneiros de guerra soviéticos. Mas a maioria das vítimas do Zyklon B foram os judeus e ciganos da Europa, assassinados durante a guerra pelos nazistas, contabilizando milhões de vítimas.

A maioria das vítimas descia dos trens sem ter a mínima ideia do que lhes aguardava nos campos. "A mentira era uma parte sistemática da metodologia do discurso nazista", lembra Olivier Lalieu, historiador do Memorial do Holocausto de Paris que acompanhou os visitantes no vôo fretado pela instituição. "No início, o objetivo da triagem era separar mão-de-obra para trabalhar nas minas de carvão de grandes empresas alemãs que se estabeleceram na região, e oferecer força de trabalho para companhias como Siemens, e muitas outras", lembra Lalieu. 

Soldado norte-americano visita local de execução de prisioneiros em Auschwitz I. 20 de março de 2022
Soldado norte-americano visita local de execução de prisioneiros em Auschwitz I. 20 de março de 2022 © Márcia Bechara/ RFI

Na chegada aos campos de extermínio, dentro de vagões sem janelas, os deportados eram imediatamente separados de suas malas e de todos os seus pertences, os quais nunca mais reveriam. Todos os objetos pessoais dos judeus partiam na sequência para depósitos conhecidos como os "Canadá" - o país da América do Norte simbolizava para os alemães da época uma espécie de "fartura", de "riqueza", lembram os historiadores do Memorial do Holocausto. "Os guardas se disputavam para trabalhar nos Canadás", lembra Teresa Wrona, guia polonesa que acompanha o grupo. "Era sinônimo de riqueza e poder. Eles tinham acesso a todo o espólio das vítimas do Holocausto", resume.

Entre o campo de Auschwitz II-Birkenau, onde o extermínio era perpetrado sistematicamente como uma "industrialização da morte", e o de Auschwitz I, onde se instalavam aqueles que eram destinados ao trabalho forçado e às experiências de médicos como o nazista Josef Mengheli, a visita vai ganhando tons mais sombrios e perturbadores.

Assista o vídeo da visita ao campo de concentração:

Na organizada cidadela de Auschwitz I, um batalhão de militares dos Estados Unidos parece chocado ao sair do prédio número 4 do museu: é que nesta construção específica foram dispostas, por andar, pertences, sapatos, louças e brinquedos dos judeus deportados para o campo. Sobre as malas, os sobrenomes e as datas de chegada ao campo, a marca da esperança de quem sonhava um dia em sair vivo do campo. No último andar, a grande surpresa: uma montanha de cabelos dos prisioneiros assassinados, com a observação de que é proibido fotografar ou filmar. O choque, mais que possível, é inevitável.

Os pertences e malas com sobrenomes e datas revelam, segundo os historiadores do Memorial do Holocausto, a esperança de quem um dia sonhava em sair vivo de Auschwitz.
Os pertences e malas com sobrenomes e datas revelam, segundo os historiadores do Memorial do Holocausto, a esperança de quem um dia sonhava em sair vivo de Auschwitz. © Márcia Bechara/ RFI

Entrevistado pela RFI, o sargento McCoy, chefe do batalhão de elite de soldados norte-americanos que desfilam em uniforme pelo campo, conta que "os Aliados vêm autorizando "essas visitas culturais". "Então estamos visitando lugares históricos". McCoy acha importante visitar locais como Auschwitz porque "muitos de nós [norte-americanos] lutamos na Segunda Guerra Mundial e a visita nos ajuda a visualizar o que o povo judeu vivenciou", afirma o militar.

Na entrada do campo, Anetta, de 49 anos, monta guarda. A polonesa loira e com piercing nas orelhas, mãe de duas crianças, guarda sozinha os portões de Auschwitz há seis anos e mora há três quilômetros do campo, hoje um memorial que recebe visitantes do mundo inteiro. Em um inglês correto e com poucas hesitações, Anetta gosta de dizer que seu trabalho é parte integrante da sua vida. "Quando tomo conta do campo sozinha, à noite, é um pouco difícil sim. Tento não pensar muito sobre a história, mas geralmente sinto uma peso sobre os ombros. Não é um trabalho simples", diz, com um sorriso. "Mas este lugar é a minha vida, passei minha vida inteira aqui, me sinto identificada com ele. O bairro onde minhas crianças estudam é logo ali na frente", aponta com o dedo. De fato, o complexo de Auschwitz-Birkenau fica hoje no meio de uma região residencial polonesa, com casas e pequenos vilarejos bucólicos.

Anetta, 49, é guardiã do complexo Auschwitz-Birkenau há seis anos.
Anetta, 49, é guardiã do complexo Auschwitz-Birkenau há seis anos. © Márcia Bechara/ RFI

Já a francesa Clarys Lutaud-Nony, 28, neta de resistentes e sobrinha-neta de um deportado para Auschwitz, não conseguiu segurar as lágrimas durante a descrição dos historiadores em frente à maior câmera de gás em Birkenau. "Foi muito difícil ver as imagens do local e ouvir a história ao mesmo tempo, eles se despiam e arrumavam suas roupas com cuidado, sendo instruídos para fazê-lo pelos nazistas, como se fossem voltar para se vestir depois", emociona-se. "Não é fácil, mas é necessário fazer essa visita. Não podemos imaginar o que aconteceu, mesmo nos informando. Ir ao local ao vivo é essencial para se dar conta da amplitude do lugar e do massacre", diz. "Foi um choque imaginar a coisa nas câmeras de gás, quase 2 mil pessoas naquele lugar, a morte executada de maneira fria e industrial... Ao mesmo tempo, é o humano que desaparece no meio disso tudo", lamenta.

Negacionismo histórico

Não é à tôa que o Memorial do Holocausto encampa a briga contra o negacionismo histórico sobre o período do nazismo na França. Um dos candidatos à eleição presidencial francesa de abril, o polêmico Éric Zemmour, representante ao lado de Marine le Pen da extrema direita, afirma que deseja "reabilitar" o regime de Vichy, quando governantes franceses colaboraram com os nazistas de Hitler, enviando para os campos de extermínio milhares de judeus e resistentes. Segundo Zemmour, a França não teria enviado "judeus franceses" para os campos, fato que é historicamente desmentido por documentos presentes no Memorial. 

O negacionismo histórico parece querer dar o tom nas próximas presidenciais francesas. Seis associações anunciaram, na quarta-feira (23), que prestaram queixa contra Zemmour, por ele negar a existência de crimes contra a humanidade e a deportação de homossexuais durante a Segunda Guerra Mundial

Os nomes, fotos e histórias das crianças que pereceram nas câmeras de gás de Auschwitz são contadas em uma das salas especiais do complexo memorial em Auschwitz I.
Os nomes, fotos e histórias das crianças que pereceram nas câmeras de gás de Auschwitz são contadas em uma das salas especiais do complexo memorial em Auschwitz I. © Márcia Bechara/ RFI

Enquanto isso, chega ao fim a visita aos campos de concentração nazistas de Auschwitz-Birkenau. Em frente a um lago e sob um sol majestoso desse domingo, 20 de março de 2022, guias e historiadores reúnem o grupo de franceses que veio nesse bate e volta para celebrar a memória de 1,1 milhão de pessoas mortas apenas em Auschwitz. 

Quando o silêncio finalmente se impõe, sem os clics e clacs de câmeras e celulares, quando as conversas finalmente calam, os murmúrios se aquietam, alguém lê o texto de uma das vítimas do local, dedicado a todos os "heróis e não-heróis, aos "homens e mulheres comuns", àqueles que "sucumbiram", que "todos possam ter um nome". O dia chega ao fim, e começam as homenagens. Em seguida, um dos historiadores pede um minuto de silêncio. Quando todos se calam, impossível não imaginar, entre aquelas alamedas e caminhos de terra, cinzas, ossos, ferro, e madeira os rostos de milhares de crianças, homens e mulheres que nos olham de volta, como um espelho para gerações futuras.

"Ainda bem que hoje fez sol", observa o cineasta Claude Lelouch, ao final da pequena cerimônia. "Imagine esse lugar sob a neve, ou com chuva", finaliza, deixando o local. 

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