Acessar o conteúdo principal
Festival de Avignon

Teatro: Destaque brasileiro no Festival de Avignon, Carolina Bianchi traz estupro e feminicídio em cena marcada por 'combate'

Desde que anunciou as atrações desta 77ª edição do Festival de Avignon, que começa nesta quarta-feira (5), o encenador português Tiago Rodrigues insiste em duas palavras: "combate" e "vulnerabilidades". É com esse mergulho de tonalidades humanistas que o novo diretor de Avignon abre um dos principais eventos de artes cênicas do mundo. A maratona inclui nomes como a brasileira Carolina Bianchi e a francesa Rébecca Chaillon, que encabeçam pesquisas cênicas contemporâneas e radicais.

A diretora e atriz brasileira Carolina Bianchi estreia em Avignon "A Noiva e Boa Noite Cinderela", a primeira parte da trilogia Cadela Força que ela desenvolve em paralelo a sua pesquisa teatral em Amsterdam.
A diretora e atriz brasileira Carolina Bianchi estreia em Avignon "A Noiva e Boa Noite Cinderela", a primeira parte da trilogia Cadela Força que ela desenvolve em paralelo a sua pesquisa teatral em Amsterdam. © Christophe Raynaud de Lage
Publicidade

Márcia Bechara, enviada especial da RFI a Avignon

Vai começar. A maratona teatral da 77ª edição do Festival de Avignon, no sul da França, abre oficialmente suas portas nesta quarta-feira (5), com 44 espetáculos na programação oficial e nada menos do que 1.447 peças no "Off", a programação paralela, contabilizando um total de 1.491 obras apresentadas por 1.270 companhias francesas e 125 estrangeiras durante 21 dias e noites na antiga Cidade dos Papas, até 25 de julho. 

À frente deste que é um dos maiores eventos de artes cênicas do mundo, outra estreia se destaca – a do diretor português Tiago Rodrigues, que traz em seu bojo o desafio de seduzir e federar as expectativas do público e da classe teatral francesa, após anos de condução do francês Olivier Py.

O desafio não é pequeno e o antigo diretor do Teatro Nacional Dona Maria de Lisboa sabe disso. Rodrigues vem, nos últimos dias, promovendo em suas redes cuidadosamente os detalhes de diversas de suas escolhas curatoriais, entre elas o espetáculo “A Noiva e o Boa Noite Cinderela”, da diretora, atriz e pesquisadora teatral Carolina Bianchi que faz sua estreia na grande cena de Avignon ao lado da companhia Cara de Cavalo. 

“Quando as pessoas dizem que o teatro pode ser perigoso, eu penso nela. Carolina Bianchi, uma extraordinária jovem escritora e intérprete brasileira, faz sua estreia no Festival de Avignon com uma peça explosiva, feminista e impressionante”, escreve Tiago Rodrigues.

Atualmente radicada em Amsterdam, onde terminou o mestrado em artes cênicas, Bianchi não é desconhecida do público brasileiro: suas criações, algumas delas apresentadas no Teatro de Contêiner, em São Paulo, já atestavam o gosto pela pesquisa e por temas que continuam a fazer parte de seu imaginário enquanto encenadora. Temas nem sempre de fácil digestão, mas em plena ressonância com sua contemporaneidade, como a violência, o sexo, as relações de poder, a morte, e, especialmente em 2023, o estupro e o feminicídio. A peça "A Noiva e o Boa Noite Cinderela" é a primeira parte da Trilogia Cadela Força, cujo último capítulo é previsto para 2025.

Além disso, para o pontapé inicial neste seu primeiro Festival de Avignon, o diretor português Tiago Rodrigues apostou em “combates” e “vulnerabilidades”, num menu que privilegia a pesquisa de linguagens, num mix com as plasticidades extendidas da performance e da dança, e um curioso detalhe, que poderia evocar uma certa fricção na terra dos gauleses: o diretor escolheu como língua homenageada de sua primeira edição à frente do tradicional Festival de Avignon nada menos que o inglês – escolha provocadora, como preconiza a essência mesma do fazer teatral.

Mulheres na cena principal de Avignon

As ousadias de Rodrigues não param por aí. O diretor programou outra mulher para abrir a cena principal na Cour d'Honneur do Palácio dos Papas de Avignon, nesta quarta-feira (5). Aos 43 anos, a diretora francesa Julie Deliquet vai repetir o feito de Ariane Mnouchkine, célébre diretora do Théâtre du Soleil, que se tornou, em 1982, a única mulher a dirigir um espetáculo na cena principal de Avignon, em 76 anos de festival. Um feito e tanto, no longo domínio masculino inaugurado pelo mítico Jean Vilar no pós-guerra francês.

Deliquet apresenta a peça "Welfare", adaptada do documentário do norte-americano Frederick Wiseman, filmado em 1973 em um centro de acolhimento social de Nova York. Em declarações à imprensa francesa, a diretora tratou de desmistificar o aspecto "sagrado" do Palácio dos Papas: "Não tive muito tempo para pensar sobre isso. Brincamos com a dureza do espaço, o tamanho, o vento, o que nos leva de volta à brutalidade do tema e à fragilidade da palavra falada. Para os atores, é uma verdadeira batalha. Com seus 30 metros de abertura, o palco é imenso. É grande demais para o teatro, o que lhe dá uma dimensão política, e foi por isso que Vilar o escolheu [como cena principal de Avignon]", detalha a diretora.

Ainda entre os destaques femininos, vale lembrar os nomes de duas jovens diretoras francesas, Rébecca Chaillon e Patricia Allio. Chaillon, à frente da companhia Dans le ventre (Na barriga, en tradução livre), trabalha no espetáculo “Carte Noire nomée désir” (Carta preta chamada desejo, em tradução livre) com o fetiche da imaginação colonial e seu rastro “racista e sexista” de clichês sobre as mulheres negras. “Meu sonho é levar essa peça para o Brasil”, confessou a diretora à reportagem da RFI Brasil.

Já Patricia Allio investiga um tema não menos espinhoso na ágora que compõe o dispositivo cênico da peça “Dispak Dispac'h”, ao dar ouvidos à acusação magistral emitida em 2018 pelo grupo de Informação e Apoio aos Refugiados (GISTI) no Tribunal Permanente dos Povos, "desafiando a Europa a enfrentar as violações dos direitos dos migrantes e refugiados" no continente, onde artistas e membros da sociedade civil se revezam para falar sobre o assunto.

 "Antígona na Amazônia"

O Brasil marca presença também no espetáculo do já consagrado (e conhecido do público brasileiro) encenador suíço Milo Rau. Depois de "Orestes em Mossul", Milo Rau faz uma nova e ousada transposição da tragédia grega "Antígona” representando-a na Amazônia brasileira para denunciar desta vez a destruição da maior floresta tropical do planeta.

A última etapa da criação da peça aconteceu no Brasil, onde foi filmada a reconstituição do massacre de Eldorado do Carajás, que ocorreu em 1996 contra militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), no estado do Pará. A sequência filmada com centenas de figurantes será exibida durante as apresentações da peça em Avignon, em que o papel principal, o de Antígona, foi confiado à ativista indígena brasileira Kay Sara. Rau filmou também em São Paulo com grandes nomes do teatro brasileiro como o diretor Zé Celso Martinez Corrêa, fundador do Teatro Oficina.

Para finalizar a empreitada de fôlego, como historicamente já o fez no Iraque, Ruanda e outros lugares de massacre, seguindo a linha de pesquisa de seu Instituto do Assassinato Político, com sede em Berlim, Milo Rau, passou quase um mês no Brasil se preparando para a encenação, no local exato onde 19 ativistas do MST foram mortos pela polícia quando bloqueavam uma estrada perto da pequena cidade de Eldorado do Carajás.

As surpresas do "Off"

Mas nem só da programação oficial vive o Festival de Avignon. Que o diga o ator brasileiro Armando Babaioff, que, ao protagonizar o elenco de “Tom na Fazenda”, com direção de Rodrigo Portella, na oferta paralela de Avignon, seduziu de tal forma o público francês que se tornou um verdadeiro fenômeno em Paris, realizando novas temporadas de sucesso também no Brasil.

Em 2023, entre outros destaques, uma dupla de atores e diretores brasileiros já consagrados na França ocupa durante todo o Festival de Avignon o teatro da Manufacture, com uma peça que já conquistou o público brasileiro. “Enquanto você voava, eu criava raízes”, que realiza sua estreia em Avignon, foi o grande vencedor do 17º Prêmio APTR, realizado pela Associação dos Produtores de Teatro do Brasil este ano. A montagem da Cia Dos à Deux venceu nas categorias Espetáculo, Música (para Federico Puppi, que também concorreu por "Ficções") e Cenografia.

Em 1998, quando os brasileiros Artur Ribeiro e André Curti apresentaram pela primeira vez o seu teatro gestual em Avignon, não imaginavam que esse seria o começo de uma longa história entre eles e o festival. Em 2023, eles devem repetir o sucesso que colecionam ao longo dos anos com “Enquanto você voava, eu criava raízes”, desta vez para o público francês.

Clique aqui para acompanhar a programação integral do Festival de Avignon 2023.

NewsletterReceba a newsletter diária RFI: noticiários, reportagens, entrevistas, análises, perfis, emissões, programas.

Acompanhe todas as notícias internacionais baixando o aplicativo da RFI

Compartilhar :
Página não encontrada

O conteúdo ao qual você tenta acessar não existe ou não está mais disponível.