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Cineasta pernambucano Camilo Cavalcante é destaque em mostras na Itália

O cineasta pernambucano Camilo Cavalcante está na Itália para apresentar dois longas-metragens premiados ao redor do mundo. Em Roma, ele acompanhou a estreia europeia do seu filme ‘King Kong en Asunción’, exibido na segunda-feira (4), na Isola del Cinema, tradicional festival a céu aberto na Ilha Tiberina, às margens do Rio Tibre.

O cineasta pernambucano Camilo Cavalcante
O cineasta pernambucano Camilo Cavalcante © Gina Marques
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Gina Marques, correspondente da RFI em Roma

Cavalcante veio à capital italiana graças à Associazione Vagaluna em parceria com a Isola del Cinema. Depois, ele seguiu para Milão, onde participa do Festival Agenda Brasil, até o dia 8 de julho. As mostras cinematográficas exibem, também, outro filme do diretor brasileiro: “A História da Eternidade”, realizado em 2014.

Ele conversou com a RFI Brasil em Roma.

A História da Eternidade é um filme que conta a história de três mulheres de idades diferentes no sertão de Pernambuco. “Esse sertão já foi muito retratado pelo cinema e pela literatura, mas acho que a gente traz uma abordagem feminina. O filme fala sobre o sertão, que muito mais do que uma região árida e seca onde as pessoas têm que se sacrificar pela subsistência. O sertão é o território da alma humana. É onde as relações interpessoais se dão de maneira honesta, de uma maneira direta que foge da forma que a gente sente nos grandes centros urbanos. No sertão, o amor e o desejo estão em estado bruto” contou.

A Salina de Uyuni, na Bolívia, é uma das locações do longa King Kong en Asuncion.
A Salina de Uyuni, na Bolívia, é uma das locações do longa King Kong en Asuncion. © Divulgação

Já o ‘King Kong en Asunción’ conta a história de um velho assassino de aluguel no momento decisivo da sua vida e em profunda angústia. Ele está escondido no interior da Bolívia e acabou de cometer o seu último assassinato. Após meses isolado, viaja para o interior do Paraguai, onde recebe uma boa recompensa. Segue, então, para Assunção com o objetivo de encontrar a sua única filha, a qual nunca conheceu. Esta viagem por dentro de si mesmo acaba despertando instintos animalescos no matador, que explode em fúria e desespero na capital paraguaia, em busca de afeto nos bordéis, como o King Kong estupefato em New York.

O cineasta definiu o filme como “uma fábula para adultos”.

“O filme mostra a trajetória desse velho em busca de amor. O afeto representa uma terra inalcançável, inatingível, para ele” diz Cavalcante.

Vencedor do Festival de Gramado 2020 e do Los Angeles Brazilian Film Festival 2020, ‘King Kong en Asunción’ tem dois protagonistas: o Velho, representado pelo ator Andrade Júnior, e a Morte, uma voz que desde o começo ilustra a pretensa verdade sobre o sicário idoso. O texto da Morte foi escrito por Natália Borges Polesso e interpretado pela atriz Ana Ivanova em língua Guarani.

“Se o Diabo fala húngaro, a Morte fala Guarani. Lembramos que o povo Guarani tem sido dizimado ao longo da história e através da colonização. Uma história perversa e violenta que até hoje tem sequelas também no Brasil, no centro-oeste no Mato Grosso do Sul, que a região fronteiriça com o Paraguai. A voz e a narração em Guarani são justamente para colocar em evidência a língua de um povo indígena tão massacrado. Ao mesmo tempo que introjeta no filme uma camada mística, endógena do nosso misticismo latino-americano” ressaltou.

Gravado em três países: Brasil, Bolívia e Paraguai

As únicas cenas gravadas no Brasil mostram o assassinato da família do protagonista, quando ele era criança. ‘King Kong en Asunción’ começa com uma atmosfera de western, com planos abertos que se alternam com detalhes. Em muitas cenas prevalece o silêncio. No início, é ambientado no deserto de sal, a imensa Salina de Uyuni, na Bolívia. Em seguida, ele percorre aldeias bolivianas, atravessa montanhas e estradas de terra, passa pelo Chaco paraguaio até chegar em Assunção.

“Bolívia e Paraguai são os dois únicos países da América do Sul que não têm fronteira com o mar. Isso é muito sintomático. As guerras e mais uma vez as imposições colonialistas fizeram com que esses dois países não tivessem acesso ao mar. De certa forma, são países esquecidos dentro da América do Sul. No filme, a gente quis fazer um retrato não só da geografia paisagística, mas também da geografia humana desse povo. Então, durante a pesquisa, a gente buscou uma travessia que pudesse mostrar a quantidade de paisagens e a diversidade humana” explicou.

O ator Andrade Júnior

O cearense Andrade Júnior faz uma interpretação livre, poética e visceral do Velho e atua como se tivesse possuído por seu personagem. Ele nasceu em Fortaleza e viveu 60 de seus 74 anos em Brasília. O ator não viu o filme finalizado porque faleceu em 2019, quando a obra estava sendo editada.

“A grande força motora desse filme é Andrade Júnior. Nos conhecemos em 2007, na Baixada Fluminense, mas só começamos a filmar em 2017. Ele sempre foi o incentivador desse filme. Durante uma década, Andrade estimulou a realização do King Kong. Esse filme é ele. A energia de Andrade está pulsando viva na tela. Ele se foi, mas o cinema é isso, torna o imenso ator eterno” disse.

Camilo Cavalcante contou que uma cena não estava prevista no roteiro, mas foi brilhantemente improvisada por Andrade Júnior. Trata-se de quando o personagem do Velho matador olha de frente para o espelho, encara sua imagem, e começa a ensaiar, nervoso e angustiado, como vai se apresentar para a filha dele.

“Foi uma cena de improviso que a gente construiu durante a viagem. Eu pedi para que Andrade trouxesse algum elemento dele, que lembrasse de alguma canção que a sua mãe cantava quando ele era criança. E assim foi. Eu me emociono muito até hoje assistindo essa cena no filme. É muito potente porque traz essa verdade da alma, do afeto do próprio Andrade.”

Urina nos políticos

Em uma cena, o protagonista se encontra no quarto de um luxuoso hotel, onde estão pendurados nas paredes retratos pintados de ex-presidentes sul-americanos, entre eles os brasileiros Fernando Collor de Mello, José Sarney e Michel Temer. Jair Bolsonaro aparece apenas em um fotograma, quase imperceptível. O Velho joga os quadros no chão e urina em cima deles.

Ator Andrade Junior no filme King Kong en Asuncion
Ator Andrade Junior no filme King Kong en Asuncion © Gina Marques

“É uma vingança bêbada desse velho que matou durante a sua vida inteira, como instrumento de defesa dos poderosos, para manter o poder da elite privilegiada. Ele sente raiva e toda a tristeza que foi sua vida, pois só se tornou matador porque, quando era criança, assistiu ao extermínio da própria família pela questão agrária. A questão agrária é muito séria no Brasil, onde hoje ainda se mata por terra. Então, naquele momento de reflexão ele se revolta, quer se vingar dos poderosos e urina na cara desses ditadores. Não só ditadores, muitas vezes presidentes até eleitos de forma democrática, mas que atuaram como ditadores em seus países. Naquele momento embriagado a ficha caiu e ele resolve se vingar e expurgar todo o nojo que sente por esses políticos sem escrúpulos.”

A política cultural no Brasil

Camilo Cavalcante critica severamente a atual política cultural no Brasil. Segundo ele, o país vive o pior momento da história contemporânea.

“Os artistas vêm sendo demonizados, diariamente atacados. O recursos não existem e o ministério da Cultura foi extinto. Este é um governo fascista que não tem nenhum tipo de preocupação ou de interesse com a cultura, com a educação, nem com as artes em geral. Também não há respeito e preocupação com a questão indígena. Ou seja, é um governo que não tem nenhuma preocupação com a vida, de uma forma geral. Sem dúvida nenhuma, a gente está vivendo o pior momento para as artes no Brasil. Não existe perspectiva enquanto esse governo estiver no poder. Essa é a verdade. A gente precisa reverter urgentemente essa situação para que os artistas, o povo, enfim a sociedade brasileira possa voltar a ter uma esperança de civilidade. O Brasil é um país artístico na sua essência” concluiu.

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