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“É preciso acabar com o luto", diz José "Pepe" Mujica às vésperas dos 50 anos do golpe no Uruguai

Às vésperas do aniversário do golpe no Uruguai, o ex-presidente uruguaio José "Pepe" Mujica falou com exclusividade à RFI. No dia 27 de junho de 1973, o então presidente Juan María Bordaberry decretou a dissolução da Assembleia Geral. Foi o ponto de partida de uma ditadura civil-militar que durou 12 anos, até março de 1985.

O ex-presidente uruguaio, José Pepe Mujica, em entrevista à RFI.
O ex-presidente uruguaio, José Pepe Mujica, em entrevista à RFI. © RFI/Captura de vídeo.
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Entrevista feita por Marilyne Buda, da RFI

José Mujica falou sobre os anos que antecederam a ditadura no Uruguai, o surgimento do Movimento de Libertação Nacional-Tupamaros (MLN-T), as condições de seu encarceramento durante a ditadura, a participação do Uruguai no Plano Condor, a Lei de Caducidade da Pretensão Punitiva do Estado e os avanços em termos de justiça.

RFI: Boa tarde, ex-presidente José Mujica. Primeiramente, gostaria que o senhor nos falasse sobre os anos anteriores à ditadura, marcados por uma forte crise econômica e social. Como essa situação levou ao golpe?

José Mujica: Meu pequeno país viveu uma interessante "siesta". Éramos o país mais igualitário da América Latina. Nos chamavam de Suíça da América na década de 1940. Estávamos relativamente bem no contexto da época, mas depois da Segunda Guerra Mundial, quando a Europa começou a se reconstruir e se fechou, houve uma mudança abrupta nos termos de troca e começamos a vender mais barato e comprar mais caro. Inevitavelmente, isso atingiu o Uruguai e a Argentina de tal forma que produziu um cataclisma que levou ao peronismo da Argentina e meu país viveu uma mudança política fenomenal. Havia uma força política, o Partido Colorado, que governou por 90 anos consecutivos e que, de repente, perdeu tudo, o governo e os municípios locais. Esse terremoto político foi alimentado pelo que estava acontecendo na economia. Os governos se tornaram cada vez mais autocráticos e fechados, e nossa experiência um tanto social-democrata que havia nos permitido a bonança econômica foi sendo deixada de lado. As medidas de segurança e as mudanças bruscas começaram a aumentar, num processo que deixou uma lição: uma sociedade que está relativamente bem e cai abruptamente sofre muito mais do que sociedades habituadas a estar submersas. Isso gerou uma série de mudanças no comportamento dos governos e nas respostas sociais. Até então, tínhamos três ou quatro centrais sindicais que foram se concentrando em uma única central. E, naquela época, na América Latina, devido à Guerra Fria, os golpes de Estado eram frequentes em todos os lugares. Nossa juventude estava impregnada e convencida de que com esse retrocesso íamos em direção a um golpe de Estado. Não sabíamos quando. Isso criou uma grande divergência entre nós. Sabíamos que a greve geral poderia ser uma arma formidável, mas para deter um golpe de Estado, ela teria que se transformar em uma insurreição. Isso foi um divisor de águas e alguns de nós optamos por uma preparação militar. Mas é impossível manter uma preparação militar clandestina em grande escala, então entramos em um processo difícil e duro que começou a questionar a metodologia e a forma de nossa democracia, que cada vez se tornava mais autoritária.

RFI: Precisamente, na década de 1960, surgiu o Movimento de Libertação Nacional-Tupamaros (MLN-T), uma guerrilha urbana que buscava responder a essa crise e derrotar o imperialismo. Você era tupamaro. Que tipo de ações você tomou? E, em retrospecto, a violência foi justificada?

José Mujica: Na verdade, os tupamaros não eram guerrilheiros, embora usassem práticas guerrilheiras. Isso levaria muito tempo para explicar. Há um autor, Real de Azúa, dessa época, que define isso claramente. A ação mais espetacular que fizemos foi uma denúncia financeira do que o sistema financeiro estava fazendo, que não envolveu disparos ou algo do tipo, mas sim um assalto a uma instituição financeira clandestina de um banco, por exemplo. Tivemos uma longa fase de propaganda pela luta armada, mas depois as coisas se complicaram porque tínhamos muita gente. Não é possível ter uma organização clandestina de grande porte. Cometemos o erro de nos saturarmos. Deveríamos ter mudado de estratégia, mas não o fizemos. Talvez tenhamos ficado prisioneiros de um "ativismo" militar e perdemos nossa perspectiva política. Mas, enfim, com ou sem tupamaros, teria ocorrido um golpe de Estado, porque o mesmo motor que criou os tupamaros também criou a central de trabalhadores como resposta, e isso resultaria na fundação da Frente Ampla. Ou seja, nossa sociedade deixou de ser social-democrata e foi polarizada entre uma corrente popular e a direita, com certas intervenções externas na região. Não nos esqueçamos de que em um país tão importante para nós como o Brasil, há muito tempo estava em vigor um regime militar e coisas semelhantes aconteciam no resto da América Latina.

RFI: Após o golpe de Estado em 27 de junho de 1973, o regime se torna mais duro, os opositores são detidos, torturados, os sindicatos e partidos são silenciados. Mas, ao contrário das outras ditaduras na região, o Uruguai tenta impor a legalidade. O Exército nomeia presidentes civis e adota um discurso de falso compromisso com a democracia. A que se deve essa particularidade do Uruguai?

José Mujica: Se compararmos a violência no Uruguai com o que aconteceu em outras partes, diríamos que é pouco significativa, porque no Uruguai a vida humana era muito valorizada do ponto de vista político. Havia muita sensibilidade em relação à nossa história, ao nosso modo de ser, à nossa cultura. Não devemos esquecer que na década de 20, 30, tínhamos um PIB semelhante ao da Bélgica, que tivemos um país que concedeu o direito de voto às mulheres muito cedo, que estabeleceu o divórcio por vontade da mulher em 1912, que separou a Igreja do Estado, que tinha educação gratuita há mais de 100 anos, que percebeu que o Estado tinha que desempenhar um papel fundamental em muitos aspectos... Isso não foi feito por nós, foi herdado de nossos avós. Existem coisas que continuam até hoje, como a energia pública está nas mãos de uma empresa estatal, o combustível para a energia elétrica está nas mãos de uma empresa estatal, que foi fundada naquela época, e assim por diante. Bem, é um país peculiar. E os principais bancos são estatais. Aquele país-tampão deparou-se abruptamente com outra realidade e sofreu os impactos disso.

RFI: Sr. Mujica, durante todos esses anos de ditadura o senhor esteve preso e fez parte dos chamados "reféns da ditadura", mantidos sob ameaça de execução caso os Tupamaros cometessem alguma ação. Em que condições os prisioneiros foram mantidos?

José Mujica: Eles nos trocavam de quartel a cada seis, sete meses. Passei sete anos sem livros, sem poder ler. Os primeiros meses daquela prisão passei amarrado com arames. Na noite em que me colocaram em um colchão para dormir, me senti feliz. Às vezes, eu ficava dois meses sem tomar banho. E em absoluta solidão, com a visita de familiares uma vez por mês, principalmente de minha mãe. E às vezes 10, 15 dias sem poder sair ao pátio, ou tomar sol, ou qualquer coisa assim. Foi difícil, mas ao mesmo tempo, para me manter vivo, tive que ruminar sobre o quanto li quando era jovem e acho que não seria quem sou se não tivesse mergulhado tão profundamente nessas forças ocultas que nós carregamos dentro e que não usamos.

Curiosamente, vistos em perspectiva, foram os anos em que mais aprendi, na solidão, porque comecei a repensar o tanto que li na juventude e que com certeza não havia assimilado. E aprendi isto: a não se deixar dominar pelo ódio e pelo fanatismo, e a compreender que há contas que não se cobram e que é preciso viver para a frente.

Operação Condor

RFI: Como outras ditaduras na região, o Uruguai fazia parte da Operação Condor, um programa comum de extermínio de opositores. Você diria que o Uruguai foi um ator-chave nessa operação?

José Mujica: Foi uma peça que participou. Na verdade, o nó ideológico do Condor vinha dos cursos que eram ministrados, no Panamá, para militares e policiais. Aqui a tortura era frequente, as sementes do Estado terrorista estavam sendo plantadas. Foi uma disciplina da Guerra Fria, que se estendeu às polícias latino-americanas e aos oficiais dos exércitos. O Condor é um produto intelectual criado de fora que foi implantado, assumido, a luta clandestina do Estado, coisas que legalmente não podiam ser feitas e que foram feitas na Argentina, no Uruguai, no Brasil, no Paraguai, no Chile. Havia comunicação privada e colaboração clandestina entre aquelas fontes, para perseguir pessoas, realizar trabalhos de infiltração, torturar, assassinar, que custaram a vida de ilustres compatriotas, legisladores do Partido Nacional e do Partido Colorado [Héctor Gutiérrez Ruiz e Zelmar Michelini, nota do editor] e a perseguição de muitos outros.

RFI: Depois do regresso à democracia em 1985, em 1986 o Parlamento votou a Lei da Caducidade da Pretensão Punitiva do Estado, com a qual se selava a impunidade da ditadura. Em 2009, no mesmo dia em que você saiu vitorioso no primeiro turno das eleições, o povo se recusou por referendo a anular essa lei. Como você vivenciou esse momento, um paradoxo?

José Mujica: Havia medo na sociedade por causa do que ele viveu durante a ditadura. Não é que a sociedade esqueceu, é que a sociedade não quis repetir. Teve muita gente que teve medo, e é lógico, humanamente, você tem que entender. As pessoas olham para frente e querem enterrar o passado amargo. Claro, sabemos que legalmente, internacionalmente, existem crimes que nunca desaparecem. Mas essa é uma explicação legal, com muito fundamento moral. Não é o sentimento das sociedades. As sociedades às vezes nem querem lembrar a amargura que aconteceu. Têm medo.

RFI: Precisamente, depois de anos de imobilidade em matéria de direitos humanos e justiça, em 2005, começaram as buscas aos desaparecidos. Em 2012, o senhor reconhece a responsabilidade do Estado pelos crimes cometidos pela ditadura. Os avanços na justiça têm sido suficientes?

José Mujica: Não, é uma mancha na nossa democracia. Digo mais: quando os anos passam, quando os atores desaparecem, a justiça é quase uma reminiscência histórica. Mas é indescritível que não tenhamos conseguido encontrar os ossos das pessoas desaparecidas. Tínhamos que fazer suposições, porque os oficiais superiores da época não colaboravam em nada. A única colaboração veio de algumas palavras de alguns soldados rasos ou alguns parentes. Mas nunca houve uma colaboração dos oficiais superiores.

RFI: Você disse várias vezes que prefere a verdade à justiça.

José Mujica: Porque a verdade é a justiça. É hora de acabar com o luto. Hoje temos uma marcha e uma memória, que é a maior manifestação que acontece anualmente no Uruguai [a Marcha do Silêncio, todo dia 20 de maio, nota do editor. Para deixar claro que há coisas que nunca mais devem acontecer.

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