Acessar o conteúdo principal

Nicarágua: de revolucionário a ditador, como Daniel Ortega chegou ao poder e destruiu a democracia

O presidente Daniel Ortega será reeleito neste domingo (7) para o seu quinto mandato, o quarto consecutivo, desde que retornou ao poder em 2007 com apenas 38% dos votos, uma limitada popularidade que, no entanto, não o impediu de construir uma tirania como aquela que ele mesmo ajudou a derrubar em 1979.

Cartaz da campanha eleitoral de Daniel Ortega e Rosario Murillo, em Manágua (25/09/21).
Cartaz da campanha eleitoral de Daniel Ortega e Rosario Murillo, em Manágua (25/09/21). © REUTERS - STRINGER
Publicidade

Márcio Resende, correspondente da RFI em Buenos Aires

A quatro dias de completar 76 anos, Daniel Ortega tornou-se a versão nicaraguense de "o Estado sou eu": altera a Constituição, controla todos os poderes, cria um sistema político de partido único e inventa leis para perseguir e prender opositores, jornalistas, ativistas e empresários.

"A ditadura Ortega-Murillo controla absolutamente todos os poderes do Estado. As manifestações estão proibidas. Não se pode nem sair às ruas com uma bandeira azul e branco (cores da Nicarágua). Pelo menos 55 organizações da sociedade civil foram fechadas, assim como veículos de comunicação. Temos mais de 200 mil exilados (3% da população) por perseguições e ameaças. Somos um país com medo", descreve em entrevista à RFI a socióloga, reconhecida defensora dos Direitos Humanos e ativista feminista, María Teresa Blandón.

Blandón é um caso raro de coragem. Fala de Manágua, desafiando o regime de Daniel Ortega, agora denominado "OrMu", devido ao duplo comando desde que, dias atrás, a sua esposa, Rosario Murillo, passou de vice-presidente a co-presidente.

Outros dez entrevistados, contatados pela RFI, entre analistas políticos, jornalistas, ex-guerrilheiros e historiadores, só aceitaram conversar sem que os seus nomes fossem revelados, por temor de serem presos. A maioria está exilada, mas, mesmo assim, temem represálias contra os seus parentes que ficaram na Nicarágua.

"Não podemos dar entrevistas. Alguns ativistas foram presos por darem entrevistas como esta. Tenho medo, claro, mas mesmo assim eu falo. Se eu me calar, sei que morrerei de vergonha. Não estou dramatizando. É uma possibilidade real ser presa", teme Blandón.

"Na Nicarágua, impera a política do medo e do uso da força. A democracia não está em risco porque já deixou de existir plenamente desde o final de 2020. Quatro leis aprovadas durante o segundo semestre de 2020 foram configuradas para eliminar a participação política e a liberdade de expressão. As pessoas evitam manifestações públicas, inclusive dar opiniões em privado. O medo estende-se a todos os parentes de presos", conta Manuel Orozco, diretor do Diálogo Interamericano e representante da América Central e do Caribe no Instituto do Serviço Exterior dos Estados Unidos.

"Esse ordenamento jurídico carece de tipificação de delitos, deixando a acusação aberta à interpretação do governo. Assim, foram presas mais de 100 pessoas sob falsas acusações e em violação dos direitos constitucionais. A crise política generalizou uma saída maciça de nicaraguenses. Desde 2018, saíram mais de 200 mil pessoas, sendo mais de 80 mil desde maio passado, quando foram presos líderes políticos e pré-candidatos à Presidência", acrescenta Orozco, também investigador das universidades de Georgetown e de Harvard.

De guerrilheiro a presidente

Desde 1984, Daniel Ortega é o único candidato presidencial da Frente Sandinista de Libertação Nacional, que, através da luta armada, derrubou Anastasio Somoza em 1979, pondo fim a 42 anos de ditadura.

Com a queda de Somoza, nove comandantes revolucionários passaram a governar o país através de uma Direção Nacional. Daniel Ortega era um deles e coordenava o comando. Por isso, foi escolhido candidato presidencial, quando os guerrilheiros decidiram convocar eleições.

Desde o fim da ditadura, o país vivia uma guerra civil entre os sandinistas e os "contra", rebeldes financiados pelos Estados Unidos. Por isso, era preciso legitimar o governo revolucionário através do pleito eleitoral, vencido por Daniel Ortega.

A guerra, no entanto, não cedeu. Grande parte do país foi destruída. Em 1990, Ortega tinha certeza de uma nova vitória nas urnas, mas para surpresa geral, a vitória de Violeta Barrios de Chamorro punha fim à revolução.

"Ortega não contava com a hipótese de perder as eleições em 1990. Membros da extinta Direção Nacional admitiram que, se soubessem que perderiam, teriam organizado uma fraude. Nesse período, Ortega entendeu que, uma vez no poder, não se pode mais deixar o poder", recorda Blandón, quem, durante os anos 80, militava na Frente Sandinista.

Ao poder mesmo sem suficientes votos

Daniel Ortega tentou retornar ao poder através de três tentativas fracassadas (1990, 1996 e 2001). Contraditoriamente, a cada nova derrota, concentrava poder ao enfraquecer o sistema de comando colegiado do partido.

Em 2000, a Frente Sandinista não tinha votos suficientes para ganhar as eleições, mas o presidente liberal, Arnoldo Alemán, somava escândalos de corrupção. Ortega e Alemán fizeram um pacto de impunidade e dividiram o Estado entre os dois. Assim, Ortega passou a controlar metade dos poderes.

O acerto incluiu diminuir a 35% o limiar de votos necessários para ser eleito no primeiro turno. Era o volume de votos que Ortega podia obter.

Em 2005, o popular sandinista Herty Lewites decidiu concorrer nas primárias contra Ortega, seu amigo. Também concorria Víctor Tinoco, atualmente preso político do regime de Ortega.

Diante da possibilidade de uma derrota interna, a convenção sandinista, dominada por Ortega, eliminou para sempre as eleições primárias e expulsou os concorrentes do partido.

Lewites insistiu na candidatura para as eleições de 2006 pelo Movimento Renovador Sandinista, que passou a reunir dissidentes de Ortega.

Daniel Ortega tinha 23% de intenções de voto; Lewites, 15% e, para aumentar as chances de Ortega, os liberais estavam divididos: Eduardo Montealegre, 17%; José Rizo, 11%.

As eleições caminhavam para o segundo turno, quando, repentinamente, Lewites morreu de infarto pouco depois de uma cirurgia de rotina. Não houve autópsia.

Mas faltava uma mudança de imagem. Ortega abandonou o discurso de barricada, abraçou o pragmatismo, o FMI, os mercados e o catolicismo com a penalização do aborto terapêutico, tornando a Nicarágua um dos poucos países que proíbe a interrupção da gravidez até mesmo quando a mãe corre risco de vida.

Ortega ganhou aquelas eleições com apenas 38,07% dos votos, retornou ao poder em 2007 e começou a construir um poder hegemônico.

"O Estado sou eu"

Esse volume de votos (um terço da população) foi sempre o seu apoio até que, na semana passada, uma sondagem do instituto Cid-Gallup, baseado na vizinha Costa Rica, indicou que apenas 19% votariam na dupla Ortega-Murillo. Outros 65% votariam num opositor se pudessem.

"A maioria das pessoas não acredita na Frente Sandinista, mas não têm outra opção de voto.

Nunca antes, desde 1979, Ortega teve um nível tão baixo de aceitação", avalia a socióloga Blandón.

A Constituição proibia a reeleição consecutiva em 2011 e estabelecia que não se podia ser eleito mais de duas vezes (não consecutivas). Porém, em 2009, um tribunal constitucional da Corte Suprema, integrado somente com juízes sandinistas, entendeu que a regra violava o direito humano de Ortega a ser reeleito.

Em 2013, já com um Conselho Supremo Eleitoral totalmente integrado por juízes sandinistas e com uma Assembleia Nacional (Congresso unicameral) dominada por deputados do governo (62 dos 90 deputados), a Constituição foi reformada, incorporando a reeleição indefinida e a possibilidade de que um parente possa dividir a mesma chapa. Atualmente, Ortega tem 70 dos 90 deputados.

"Esses deputados foram eleitos não pelos votos, mas pela fraude", denuncia Blandón.

A estratégia do medo

"Aos poucos, o ex-guerrilheiro construiu uma ditadura como aquela que ele ajudou a derrubar em 1979. A ditadura de Somoza reprimiu um movimento guerrilheiro armado. A de Ortega massacrou um movimento de jovens desarmados", compara María Teresa Blandón, em referência à repressão iniciada a partir de abril de 2018, quando entrou em ação o estado terrorista repressor, treinado em Cuba e com os métodos da Venezuela, os países aliados da Nicarágua.

Os jovens paramilitares armados que auxiliam na repressão são comandados pela esposa co-presidente, Rosario Murillo.

"Os simpatizantes do governo intimidam a população nas ruas, acusando as pessoas de traidoras se não forem votar. A fraude eleitoral é evidente: num país com 6,6 milhões de habitantes, o governo anunciou, em outubro, a inscrição eleitoral de 4,3 milhões de nicaraguenses. Isso equivale a 115% da população habilitada para votar. Também anunciou uma vitória com mais de um milhão de votos, quando a abstenção não deve ficar abaixo de 40%", denuncia Manuel Orozco.

Daniel Ortega faz valer o ensinamento de Tomás Borge, antigo comandante da revolução e fundador da Frente Sandinista, que, em 2011, num discurso público, revelou um ensinamento que transferiu ao seu discípulo:

"Aqui, tudo pode acontecer, menos que a Frente Sandinista perca o poder. Eu dizia a Daniel Ortega: podemos pagar qualquer custo, digam o que disserem, a única coisa que não podemos perder é o poder. Façamos o que tivermos de fazer. O preço mais elevado seria perder o poder".

NewsletterReceba a newsletter diária RFI: noticiários, reportagens, entrevistas, análises, perfis, emissões, programas.

Acompanhe todas as notícias internacionais baixando o aplicativo da RFI

Compartilhar :
Página não encontrada

O conteúdo ao qual você tenta acessar não existe ou não está mais disponível.