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Brasil vive momento perigoso e mudança é mais urgente do que na época da ditadura, diz Casagrande

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Ele é um dos jogadores mais icônicos do futebol brasileiro. Comentarista esportivo, foi um dos fundadores da  Democracia Corinthiana. A RFI conversou com Walter Casagrande Jr. sobre temas como as eleições gerais do próximo domingo, racismo e homofobia no futebol (com os recentes ataques à seleção brasileira no jogo contra a Tunísia, em Paris), boicotes à Copa do Catar, e os prós e contras da seleção brasileira que tentará o hexa.

O comentarista de esporte Walter Casagrande.
O comentarista de esporte Walter Casagrande. © Bob Wolfenson
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Márcia Bechara, da RFI

(Para assistir a entrevista na íntegra, clique na imagem principal acima)

RFI: Vamos começar com o escândalo de racismo que foi esse jogo do Brasil contra a Tunísia, no Parque dos Príncipes. Aqui em Paris tivemos a agressão depois do gol de Richarlison, com a plateia jogando bananas para os jogadores, entre outras coisas, a vaia ao hino brasileiro. Você jogou bola na ditadura e já lutava contra o racismo há muito tempo, já que essa é uma das bases da Democracia Corinthiana. O racismo piorou de lá para cá?

Walter Casagrande Jr: Piorou muito, e, pelo jeito, piorou no Brasil e no mundo. Casos de racismo contra jogadores brasileiros são constantes. Os times vão jogar fora, na Argentina ou em qualquer outro país, sempre tem uma torcida provocando a outra, fazendo gesto imitando macaco, com jogadores sendo ofendidos dentro de campo, e aqui no Brasil também. Já teve polêmica também de um jogador denunciando uma injúria racial ou outra, e aí não conseguiu provar. Enfim, isso acontece constantemente. Mas o que me assusta é que você vai jogar na França e [isso acontece com] um país, um time, uma seleção pentacampeã do mundo, que é admirada pela história dela, contra uma seleção africana [a Tunísia], que também vai na Copa, que é uma boa seleção. Tenho marcado presença em Copas do Mundo e é a primeira vez que eu vejo isso. Sinceramente, eu não me lembro de outra vez que teve uma reação racista dessa maneira contra a seleção brasileira. Há pouco tempo, duas semanas atrás, já teve o [caso do] Daniel Alves que jogaram banana no campo pra ele, já teve com Richarlison, já teve assim. Mas a seleção brasileira é uma seleção. Pelo que eu saiba, amada, idolatrada no mundo todo, e o maior jogador do mundo de todos os tempos foi o Pelé, que é negro. Foi muito estranho.

RFI: É um sintoma do que acontece na sociedade civil hoje, nas discussões que extrapolam a rede e que vão para o campo, ou é outra coisa?

Walter Casagrande Jr:  O mundo está meio que dominado pelo ódio. Isso começou com o Trump nos Estados Unidos e com o Bolsonaro aqui no Brasil. Violência, armas na rua. Quem é racista se sente no direito de jogar pra fora todo o seu preconceito, todo o ódio contra outra raça. Quem é homofóbico se sentiu com todo o direito de atacar as pessoas LGBTQIA+, os machistas perderam a vergonha de ofender uma mulher, de agredir uma mulher. O presidente da República faz isso sim, o presidente Jair Bolsonaro. Ele agride mulheres verbalmente por isso. A presa principal dele são mulheres jornalistas. O machismo dele é tão gigante que ele não aceita perguntas de mulher. E isso no mundo todo. Na Itália agora ganhou o partido fascista. Isso me preocupa bastante. Neonazistas também estão aflorando no mundo todo. Mas então, mas o torcedor que vai ao estádio, ele vai com uma ideologia, ele vai com um comportamento que é dele. Se eu sou racista, se eu sou homofóbico, eu me sinto seguro de o ser, e sou torcedor de um determinado time, de uma determinada seleção, eu vou pra dentro do estádio, vou me comportar. Só que aquilo foi assustador, aquilo foi assustador. A Fifa tem que tomar uma providência. Foi uma agressão racista para jogadores brasileiros que estavam vestindo a camisa da seleção brasileira. Então é uma agressão ao país.

RFI: O Wladimir, lateral esquerdo histórico do Corinthians e um dos fundadores da Democracia Corinthiana, já reclamava de racismo, ele é um dos caras que teve a coragem de levantar essa bandeira lá atrás, há 40 anos. O que mudou? Mudou alguma coisa do racismo de lá para cá?

Walter Casagrande Jr: Mudou uma coisa muito importante, negativa - o racismo ficou exposto. Hoje nós temos redes sociais. Hoje você grava com celular qualquer coisa que você quiser, tem câmeras em todos os lugares nas ruas. Em todos os locais, shoppings, hotéis, prédio de apartamentos. Então, hoje, o racismo tem voz, tem cara e tem imagem. E isso aí ficou chocante.

RFI: Um outro tema é o preconceito do ambiente do futebol contra a comunidade LGBTQIA+. Por exemplo, o caso do Richarlyson, do São Paulo, que esperou terminar a carreira para enfim se posicionar como bissexual. Mas imagino que lá atrás isso também acontecia. Os jogadores continuam com medo de sanções se se exprimirem nesse sentido ou está mudando?

Walter Casagrande Jr: Nunca se expôs isso. O mundo do futebol brasileiro é muito machista, sabe? As brincadeiras, na maioria das vezes, era dizer que o outro era gay de uma forma mais pejorativa em diversas situações.Tava na cara que aquele que assumisse a condição de gay, de bissexual ou de qualquer outra condição de gênero, ele seria excluído, sem dúvida. Até pouco tempo atrás ninguém falava, não tinha nenhum gay no futebol, não tinha ninguém que fosse bissexual ou trans. O cara que era gay jogando futebol, ele convivia no vestiário com todos os companheiros dele e via as brincadeiras que se fazia. Ele jamais iria assumir, jamais iria ter confiança, porque ele percebia que ele não ia ser levado a sério, nem ser respeitado pelos próprios jogadores.

RFI: O que você acha do boicote que grande parte da sociedade francesa pretende fazer à Copa do Mundo do Catar

Walter Casagrande Jr: Eu acho que a Copa não deveria ser no Catar. Eu acho que o futebol é um dos maiores meios de inclusão social e todos têm o direito, independentemente da cor, do gênero, da raça, de ir ao estádio de futebol com segurança, voltar em segurança, as mulheres podem ir ao estádio, enfim, o futebol, ele é uma inclusão, é um meio de inclusão social. Em qualquer país do mundo. E lá no Catar esse respeito não existe. Eles não admitem homossexualidade. As mulheres não são respeitadas, elas não têm os direitos respeitados. E a Fifa escolheu o Catar em uma eleição. Eu não sei, eu não confio nessas eleições para Olimpíada e Copa do Mundo. Eu não confio. Tem que ser, na minha opinião, em países que tem histórico de futebol, em primeiro lugar. O Catar não tem tradição de Copa do Mundo. Ele nunca fez boas campanhas em Copa do Mundo ou nunca foi em uma Copa do Mundo. (...) A Copa tem que ser na casa de países que respeitam os direitos humanos e que tenham tradição no futebol. É a mesma coisa que fazer uma Copa do Mundo na África do Sul na época do apartheid.

RFI: Como você avalia a seleção brasileira hoje?

Walter Casagrande Jr: Olha, a seleção brasileira jogou muito bem contra Gana, jogou muito bem contra a Tunísia, jogou bem. Eu gostei. Eu gosto, por exemplo, do meio de campo e do ataque mais leve, como fizeram contra Gana com o Casemiro, Paquetá, Neymar, Rafinha, Richarlison, Vinícius, Júlio. Isso eu gosto e isso funciona. E isso é a escola no futebol brasileiro e que todo brasileiro gosta. Esse tipo de jogo. Ok, tá jogando bem, mas eu tenho o pé atrás, os pés no chão aliás. Porque nós não temos um parâmetro real da nossa condição psicológica e de competitividade. Nós temos a condição técnica, os jogadores são bons, eles jogam nos grandes clubes da Europa. Então você sabe que os caras são bons. Mas veja os países que estão na nossa chave. A Suíça ganhou da Espanha, na Espanha. A Sérvia ganhou da Noruega fora de casa de 2 a 0, e a Suíça ganhou da República Tcheca. Ninguém classificou para a semifinal da Liga das Nações, mas olha o peso dos resultados na Suíça, dos resultados da Sérvia.(...) Mas o que isso quer dizer? Quer dizer o seguinte: eles ganharam de times melhores que eles. A Suíça foi na Espanha, ganhou de uma grande seleção que é sempre candidata ao título. A Suíça ganhou fora de casa e depois ganhou da República Tcheca, que é um time que jogou a última Copa. Mas eu acho que o Brasil é um dos favoritos junto com a França, com a Bélgica, com a Alemanha. Mesmo a Alemanha não indo bem nas finalizações, mesmo a Inglaterra sendo rebaixada na Liga das Nações, nós temos que levar em consideração que o campeonato mais importante que os jogadores têm hoje é a Copa do Mundo. Então o peso, os resultados da Suíça e da Sérvia são bem maiores do que o peso e o resultado do Brasil contra Gana e Tunísia. Mas eu acho que o Brasil está no grupo das favoritas, sim.

RFI: O futebol brasileiro tinha uma relação diferente com a cultura, com o underground, na década de 1980. Uma relação mais descomplexada, parece, com a cultura. Você, por exemplo, participou, entre outros, do filme Cidade Oculta (1986, Brasil). O futebol brasileiro ficou mais careta?

Walter Casagrande Jr: Era uma geração diferente. Por exemplo, o Wladimir, ele participou de dois filmes e eu também. Eu participei do Onda Jovem, que era um filme sobre o futebol feminino, que participou também outro jogador, Lupita, mas participaram também Caetano Veloso, Daniel Alves, Vera Zimmermann. Muitas pessoas ali, tudo meio cultural, underground da sociedade brasileira. Teve outros filmes que eram mais erotizados e nós participamos. A nossa ligação com a cultura era a porta estava aberta, e entrava quem quisesse entrar. No meu caso, eu ia, eu ia em muitos bares da noite de São Paulo, enfim, bares de rock'n roll que eu gosto. O Sócrates foi comigo várias vezes, foi comigo várias vezes no teatro. (...) A gente, o pessoal da Democracia Corinthiana, nós éramos muito ligados à cultura, como o Wladimir, o Adilson, que era diretor, Daniel Gonzalez, que era um uruguaio, jogadores que eram muito ligados à música e à cultura brasileira. A porta estava aberta. Depois que as redes sociais apareceram e as pessoas começaram a se preocupar com o número de seguidores. (...) As pessoas se afastam da cultura, porque muito, é muito mais fácil pegar o celular, tirar uma selfie, gravar uma dancinha do que você ir até o teatro ver uma peça.

RFI: Como você vê o Brasil hoje, às portas das eleições gerais neste domingo (2)? Quais são suas expectativas para esse pleito?

Walter Casagrande Jr: Ele é muito mais perigoso, muito mais grave. E a mudança é muito mais urgente do que era naquela época [da Ditadura]. Naquela época era muito fácil. Era assim, todo mundo queria democracia, então todo mundo, já no começo dos anos 1980, lutava, no final dos anos 1970, em 1979, pela anistia dos presos políticos, a população já estava pressionando porque nós não aceitaríamos mais viver em uma ditadura, viver sem liberdade. Em 1981 foi difícil, ainda teve o atentado no Riocentro, lá no Rio de Janeiro, em 1982 ainda era pesado. Perseguiram a gente, a Democracia Corinthiana. Nós tínhamos ficha do DOPS, da polícia especializada na repressão, nós brigávamos por democracia. Então nós queríamos a liberdade dos jogadores, nós queríamos uma participação, conseguimos votar dentro do nosso grupo. (...) Tudo se resume numa palavra só: democracia. Então, quando você, quando você luta pela democracia, automaticamente você está lutando para tudo aquilo que eu falei, contra homofobia, racismo, machismo, agressão à mulher, desrespeito... A democracia abrange a liberdade. Não existe democracia sem liberdade. O jogador era tratado com muita infantilidade. Você pode ver até hoje isso, o jogador brasileiro até hoje é muito infantil. O comportamento dele é muito infantil. Quase todos passam pela síndrome do Peter Pan. Depois não consegue sair, porque aquele negócio de você não resistir, amadurecer, resistir a ficar adulto, você fica com 30 anos fazendo coisas de 15, né? Eu tinha 18 anos só, mas eu também não queria ser infantilizado. Eu tinha outros pensamentos, outras vontades.

RFI: Você tem medo de agressões e perseguições por defender tão frontalmente suas posições? Você sofre ataques?

Walter Casagrande Jr: Direto. Muitos ataques nas redes sociais. Muitos. Só que assim eu fiquei escravo da droga há muito tempo. Hoje eu não sou escravo de nada, e muito menos do medo. Eu sei a gravidade das situações, mas eu não fico escravo do medo. Não vou me trancar dentro da minha casa porque lá fora tem um monte de gente armada querendo matar e querendo atirar em quem é contra o governo. Isso é problema deles, não é problema meu. Sabe quem está com problema? São eles. Eles que têm ódio. Eu não tenho ódio.

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