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Por que diversas celebridades e parte da opinião pública francesa decidiram boicotar a Copa do Catar

A ex-estrela do futebol francês e hoje ator Eric Cantona, Vincent Lindon, um dos atores mais prestigiosos hoje da França, vencedor de vários prêmios. A romancista, ensaísta e autora best-seller mais esperada dessa temporada literária, Virginie Despentes (traduzida no Brasil pela N-1 Edições e Cia das Letras), ou mesmo o presidente do Partido Comunista Francês (PCF), Fabien Roussell. Entre eles, um assunto comum que sacode o país em ano de Copa: um boicote total como forma de protesto ao evento. 

Didier Deschamps (esq.), técnico da seleção francesa de futebol, e o ex-astro do futebol francês e hoje ator, Eric Cantona (dir.). Ambos se pronunciaram sobre as críticas à Copa do Catar de 2022.
Didier Deschamps (esq.), técnico da seleção francesa de futebol, e o ex-astro do futebol francês e hoje ator, Eric Cantona (dir.). Ambos se pronunciaram sobre as críticas à Copa do Catar de 2022. AFP/Archives
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Márcia Bechara, da RFI

A lista de causas do boicote à Copa do Mundo no Catar proposto por algumas celebridades francesas é extensa e encabeçada por motivos como os milhares de operários mortos durante as obras para o evento esportivo; os gastos "nababescos" para instalar sistemas potentes e gigantes de ar-condicionado nos estádios, num país que pode ter picos de temperatura acima de 50°C, em plena crise ecológica; a corrupção e, finalmente, o atribuído desrespeito do Catar, segundo observadores internacionais e ONGs, aos direitos humanos, em um país que manifestamente ainda criminaliza, por exemplo, a homossexualidade. 

Nas redes sociais francesas, os apelos ao boicote se multiplicam sob a hashtag #BoycottQatar2022 (#BoicoteCatar2022, em português). Tudo isso bem no meio da tentativa do país do Oriente Médio de lustrar sua imagem, desgastada mundo afora pela falta de abertura e os ataques a valores caros aos chamados "países do Ocidente". No entanto, o xeique Tamim bin Hamad Al-Thani não está realmente preocupado com sua Copa do Mundo, pois sabe que todos estarão alinhados em campo e nas arquibancadas oficiais. Mas a questão continua sendo a imagem do evento, principalmente no Ocidente, a fim de atrair turistas e influenciadores, tanto quanto Dubai. Entretanto, o tumulto, que tem dominado a opinião pública, pelo menos no Velho Continente, ainda não parece estar longe de ser resolvido.

De acordo com o jornal britânico The Guardian, 6.500 trabalhadores morreram em dez anos durante a construção de estádios no Catar. ONGs como a Anistia Internacional já revelaram em relatórios especiais as condições extremas enfrentadas pelos trabalhadores no local: calor, desidratação, trabalho forçado e salários não pagos. Segundo uma pesquisa da Anistia Internacional realizada entre 17.000 adultos originários de 15 países, 48% dos franceses não pretendem assistir à próxima Copa do Mundo de futebol no Catar.

O mais impressionante é que o boicote vem de uma parte da sociedade francesa que, ao contrário de outras, adora futebol, como Eric Cantona. O ex-atacante da seleção francesa enviou uma carta aberta para as redes sociais na qual declarou que "não assistirá a uma única partida desta Copa do Mundo". "Isso me custa muito porque desde criança é um evento que amo, que anseio e que assisto com paixão! Mas sejamos honestos conosco mesmos! Esta Copa do Mundo não faz sentido! Pior, é uma aberração", continuou ele, que fez declarações semelhantes em diversos canais de TV franceses.

O ex-atacante francês enviou uma carta aberta sobre redes sociais na qual ele declarou que "não assistirá a uma única partida desta Copa do Mundo". "Custa-me porque desde criança é um evento que amo, que anseio e que assisto com paixão! Mas sejamos honestos conosco mesmos! Esta Copa do Mundo não faz sentido! Pior, é uma aberração", continuou ele.

"Se a França ganha ou perde, eu não me importo! Há coisas na vida que são muito mais importantes do que o futebol! Em vez disso, eu assistiria a todos os episódios de [série francesa dos anos 1980] Colombo novamente, já não os vejo há muito tempo", disse o ex-jogador de 56 anos. "Uma aberração ecológica também com todos aqueles estádios com ar-condicionado. Que loucura, que estupidez! Mas acima de tudo, um horror humano... Quantos milhares de pessoas morreram para construir estes estádios. E para que, no final das contas? Para entreter a geral durante dois meses", martelou Cantona, convidando todos os seus "amigos do futebol" a boicotar o evento porque para ele "quanto menos espectadores houver, menos dinheiro haverá".

Para o astro do cinema francês, Vincent Lindon, trata-se de uma "história repugnante": "Não assistirei de forma alguma este Mundial", declarou o ator à rádio francesa France Inter. "Você pode imaginar o novo continente, as Américas, tendo a oportunidade de ter o esporte mais popular do planeta e perdendo [o evento] para o Catar", fuzilou Lindon. "É claro que deve ter havido muitos arranjos, concessões ou compromissos para os norte-americanos, que, quando querem algo, não o perdem, e desta vez se inclinaram", continuou o ator de 63 anos, antes de concluir friamente: "Na verdade, penso que hoje nos deixamos devorar pelo dinheiro avermelhado pelo sangue", denunciou.

"Eu nem sei por onde começar. Estou estupefata", declarou a escritora Virginie Despentes, ex-júri do Goncourt, o maior prêmio literário francês, e sensação da nova temporada de livros na França. "Estamos diante de um tal nível de aberração. Esse evento no Catar simboliza aquele momento em que você se sente completamente desconcertado. Já nem se trata sequer de cinismo. Este caso está em outro nível. Você quase se pergunta: como eles puderam imaginar que ninguém notaria nada, que isso passaria sem nenhum contratempo? (...) Não vou seguir o evento, obviamente, e me pergunto se muitos franceses o farão", declarou a romancista e atenta torcedora do futebol feminino ao site esportivo francês sofoot.com

"Se eu fosse um jogador de futebol, escolheria não ir"

"Se eu fosse um jogador de futebol, escolheria não ir", declarou o ex-candidado do Partido Comunista Francês à Presidência da França, Fabien Roussel.  "Ouvi o apelo de [Eric] Cantona para que eles não fossem e sou bastante sensível a isso". "Sou um fã da equipe francesa, então isso vai me incomodar", admitiu. "A mídia não teria mensagens a transmitir antes, durante e depois da competição para falar sobre o meio ambiente ou desafiar a homofobia? Esta Copa do Mundo é também uma oportunidade para fazer avançar os direitos fundamentais, inclusive no Catar", refletiu o político em declaração ao site de France Info.

O treinador da seleção francesa, Didier Deschamps, preferiu se retirar da polêmica, mas sem subestimar a importância do problema. "Não foram os jogadores, nem eu, nem você, que decidiram que a competição seria jogada lá. Há tomadores de decisão que já decidiram", afirmou recentemente à imprensa francesa. "Não quero esconder a realidade dos problemas ligados à condição desta Copa do Mundo. Como cidadão, quero enviar uma mensagem de paz", contemporizou. 

"Sem nós"

Na França, a imprensa está começando a expressar hostilidade à Copa do Mundo. O diário Le Quotidien na ilha francesa da Reunião anunciou na segunda-feira à noite que não participará da Copa do Mundo no Catar por causa dos "ataques intoleráveis à dignidade, às liberdades humanas, às minorias e ao planeta" na organização do torneio.

A manchete na primeira página da edição de terça-feira deste que é um dos dois jornais regionais da ilha, dizia: "Sem nós". É a primeira vez na França que um órgão de imprensa anuncia que está boicotando este grande evento futebolístico.

O popular jornalista esportivo Frédéric Hermel, que trabalha entre a França e a Espanha, disse que cobrirá exclusivamente e por razões profissionais a seleção espanhola, mas prefere que os Bleus não ganhem a taça e diz que não assistirá aos outros jogos.

"Não quero que a seleção francesa vença esta Copa do Mundo, para que a imagem da seleção francesa e da França não seja associada a ela", disse.

Embora a atribuição da Copa ao Catar tenha ocorrido há uma década, na reta final a incompreensão e o desgosto por esta escolha está começando a se tornar cada vez mais vociferante. "Influenciadores e petições online pedindo um boicote começam a mostrar sua discordância com esta Copa do Mundo.

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