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Rendez-vous cultural

Curtas brasileiros discutem estereótipos e preconceitos em festival francês

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A edição de 2023 do Festival do Curta-Metragem de Clermont-Ferrand volta a celebrar a vida e o cinema, passado o choque da Covid-19. Apesar dos longos períodos de isolamento da pandemia e das dificuldades de financiamento, os cineastas brasileiros continuaram trabalhando em seus projetos e finalizando filmes. Neste sábado (4) serão conhecidos os vencedores dos 17 prêmios distribuídos pelo prestigiado festival francês.

Os diretores Guilherme Xavier Ribeiro e Gabriella Maia Meirelles têm filmes em competição no Festival do Curta-Metragem de Clermont-Ferrand.
Os diretores Guilherme Xavier Ribeiro e Gabriella Maia Meirelles têm filmes em competição no Festival do Curta-Metragem de Clermont-Ferrand. © Adriana Moysés/RFI
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Adriana Moysés, enviada especial a Clermont-Ferrand

O Brasil tem três filmes selecionados na competição internacional de Clermont-Ferrand, enquanto “Big Bang”, de Carlos Segundo, já premiado como melhor curta autoral no Festival de Locarno, na Suíça, concorre na competição nacional por ser uma coprodução franco-brasileira.

“Big Bang” narra a história de Chico, um homem com nanismo que trabalha consertando fornos. Ele leva uma vida solitária e sofrida, tanto pelo sentimento de abandono familiar, principalmente do pai, quanto pela exclusão social decorrente de sua condição fisica. Mas Chico descobre pouco a pouco uma forma de resistência e, por que não, de vingança. Chico é interpretado pelo ator Giovanni Venturini, que viveu o filme como um presente, por ter retirado os corpos dos deficientes da invisibilidade.

Carlos Segundo já havia tido boa repercussão no circuito internacional com seu curta “Sideral”, que em 2021 concorreu à Palma de Ouro no 74º Festival de Cannes e entrou, neste ano, na lista de inscritos ao Oscar.

Para o professor de cinema da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, realizador, roteirista e montador, essas indicações prestigiosas não diminuem em nada a importância de estar com o quarto curta em competição em Clermont-Ferrand. "Esse festival é a meca do curta-metragem mundial, um encontro de diferentes países, diferentes culturas, estilos, ou seja, a gente oxigena o olhar quando vem para cá", disse Carlos Segundo à RFI. "É sempre um prazer, uma alegria estar aqui, encontrar as pessoas e fazer novos amigos", acrescentou.

Na disputada competição internacional, que reúne 78 filmes, o curta “Escasso”, da carioca Clara Anastácia, com codireção de Gabriela Gaia Meirelles, tem Rose como protagonista, uma passeadora de pets interpretada pela própria diretora e roteirista. Rose encontra uma casa aberta no meio da pandemia e resolve morar nela.

Anastácia parte de um conceito que tem desenvolvido, o “melodrama decolonial”, que utiliza métodos tradicionais do melodrama, com personagens estereotipados, para descolonizá-lo. “O filme é uma entrevista, basicamente é um falso documentário. Um grupo de estudantes, ou de jornalistas, ou de filmmakers – a gente não coloca isso em pauta –  vai entrevistar essa mulher para entender qual é a dela nessa casa. A partir disso, ele discute território, ocupação, identidade, fé, culinária, entre muitas outras coisas, dentro de uma estética da comédia e desse humor trágico que o carioca tem”, descreve Anastácia.

O curta foi filmado durante a pandemia. “Se encontrar naquele momento com o governo do Bolsonaro, sem perspectiva de vacina, sem políticas públicas de assistência, poderia querer dizer morrer, mas a gente escolheu a vida através do cinema”, recorda Gabriela Gaia Meirelles, convidada para a codireção de “Escasso” em parte por ser branca.

“A gente tem uma ideia de autoria, que é uma autoria sempre do diretor, que é um homem branco. É recente ter mulheres brancas na direção e corpos negros sendo filmados. A grande diretora de cena é a Rose. A todo momento ela está exorcizando, ridicularizando a diretora branca e a equipe como um todo. Ela está manejando essa equipe e é ela quem comanda a cena. Eu gosto do conflito que o filme propõe e acho que é um conflito que move. É a nossa relação, sendo uma relação interracial de duas artistas que trabalham juntas e que partem de lugares periféricos, mas diferentes”, analisa Gabriela.

O filme das realizadoras cariocas compete em Clermont-Ferrand depois de ter conquistado os prêmios de melhor curta-metragem nos festivais IndiLisboa, do Rio e Brasília.

Universo estético e temático do caipira

“Ainda Restarão Robôs nas Ruas do Interior Profundo”, também selecionado para a competição internacional de Clermont-Ferrand, é o terceiro filme do paulista Guilherme Xavier Ribeiro. O curta parte de uma história baseada em fatos reais de uma vila periférica de Assis, cidade do interior de São Paulo, onde vários moradores do campo chegaram desde a mecanização do trabalho na zona rural. Desse lugar, surgiu a história de um garoto que tinha uma égua de estimação e essa égua fugia para o centro da cidade.

“No filme, os garotos se juntam para ir atrás dessa égua e encontram nesse contexto um pouco dessa complexidade política e social que o Brasil tem vivido nos últimos anos, com essa ascensão da extrema direita e que estava muito forte nas ruas do interior profundo”, descreve o cineasta.

Segundo Guilherme, o povo caipira não tem uma tela para se ver e refletir sobre a realidade. “Eu acho que esse é um ponto de partida, se não a gente tem um vácuo de representação e um vácuo de questionamento sobre a nossa própria história, sobre a nossa realidade, sobre a nossa complexidade e o caipira”, avalia.

Ao lado de dezenas de outros diretores e roteiristas, Guilherme integra o Fórum de Cinema do Interior Paulista. Esta rede conecta cineastas de 92 cidades e atua no fomento e na promoção desse cinema interiorano, que busca novas narrativas. “A gente tem a periferia das cidades interioranas, que traz essas pessoas que vêm do campo, que têm outras origens”, explica. “É um universo estético e temático que é muito novo e muito potente para o cinema. E são pessoas que precisam ter um espaço e precisam ser vistas porque nunca tiveram esse espaço antes”, afirma.

Masculinidade e preconceitos

Ficção em preto e branco, “Takanakuy”, primeiro curta-metragem do consagrado diretor de arte peruano Gustavo Bockos, mais conhecido como Vokos, radicado em São Paulo, leva o espectador às montanhas remotas do Peru, onde as comunidades andinas têm seus próprios códigos de organização e regras de vida. Entre eles, Vokos descobriu, já adulto, a existência dos festivais de luta chamados “Takanakuy”.

Uma vez por ano, em 25 de dezembro, os moradores de povoados andinos fazem um acerto de contas no braço, com o objetivo de iniciar um novo ano livre de rancores e culpas. “Eles usam a violência como catarse para criar a paz e esperar a chegada de um período de novas alegrias, sempre juntos”, conta o diretor peruano.

Partindo de uma experiência pessoal, a de ter sido criado por mulheres e nunca ter conhecido seu pai, o cineasta explora aspectos da masculinidade nesse contexto que reflete “a cultura real do Peru”. “É uma história sobre preconceitos”, resume Vokos.

Fausto, um menino que está entrando na puberdade, vive só com o pai, um homem distante, bruto e violento que não dá atenção ao garoto. Fausto encontra conforto para a ausência da mãe e sua solidão nos momentos compartilhados com Chaska, um rapaz da vizinhança que se preocupa com ele e tem respostas para suas inquietações de pré-adolescente.

“Só de ver a relação de amizade entre os dois, o pai de Fausto pressupõe que Chaska teria um interesse homossexual no filho, o que nunca aparece no filme. “É como se não pudesse haver na cabeça daquele homem violento uma amizade desinteressada”, diz o cineasta. A tensão cresce entre os personagens com a aproximação de “Takanakuy”.

Enfim livres das restrições da pandemia, o Festival do Curta-Metragem de Clermont-Ferrand reencontrou o seu público, com salas lotadas, profissionais do mundo inteiro presentes nas projeções e festas noturnas. Os vencedores serão conhecidos neste sábado.

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