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Planeta Verde

Projeto contestado na França alerta para risco de reservatórios de água piorarem as secas

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Confrontos de uma violência rara na França opuseram no fim de semana militantes ecologistas e a polícia. O motivo da discórdia é a construção de um grande reservatório de água destinado a irrigar campos agrícolas nos períodos de seca, que devem se tornar cada vez mais frequentes com as mudanças climáticas. Entretanto, ecologistas e especialistas alertam que aquilo que, à primeira vista, pode parecer uma boa solução para o problema, na realidade tende a piorar ainda mais o clima.

Milhares de manifestantes, inclusive vindos do exterior, participaram de protesto contra a construção do reservatório de Sainte-Soline, na França. (25/03/2023)
Milhares de manifestantes, inclusive vindos do exterior, participaram de protesto contra a construção do reservatório de Sainte-Soline, na França. (25/03/2023) REUTERS - YVES HERMAN
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Lúcia Müzell, da RFI

Os manifestantes, entre os quais diversos membros da bancada ecologista e da esquerda radical na Assembleia, estão determinados a impedir a construção do reservatório de Sainte-Soline, no oeste francês. Para eles, a obra representa uma “privatização da água” para o benefício do agronegócio, em detrimento da agricultura familiar e das populações locais.

"Acho surpreendente que três quartos das pessoas com quem a gente fala sobre os reservatórios são, a princípio, a favor deles. Mas quando explicamos cinco minutos sobre o que eles são na realidade, as pessoas ficam contra”, afirma o manifestante Noé, ouvido pela RFI. "Na televisão, vemos que eles recuperam água da chuva e a utilizam na agricultura, mas esse projeto aqui é totalmente diferente: vai buscar água nos lençóis freáticos para que um pequeno número de agricultores possam usá-la. É uma privatização da água, e os pequenos agricultores não terão acesso a ela”, denuncia.

Riscos para o ciclo hidrológico

O projeto do governo é construir um total de 16 reservatórios, entre os quais o de Sainte-Soline é apenas o segundo. A meta é abastecê-los com as reservas estocadas nos lençóis freáticos durante o inverno e recuperar o que seria “excesso" de água nos rios ao nos meses frio. Essa água correria naturalmente na direção do mar, onde “se perderia”, alegam os defensores do plano, em especial a Coop de l’Eau, cooperativa da qual fazem parte os cerca de 450 agricultores beneficiados pelo projeto.

Os megarreservatórios acumulariam um total de 6 milhões de metros cúbicos de água – o equivalente ao usado em 1,5 mil piscinas olímpicas. Hidrólogos têm advertido que o processo pode perturbar o ciclo hidrológico natural e prejudicar o preenchimento dos lençóis freáticos nas regiões envolvidas.

Protesto em Sainte-Soline acabou com violentos confrontos entre a polícia e manifestantes. (25/03/2023)
Protesto em Sainte-Soline acabou com violentos confrontos entre a polícia e manifestantes. (25/03/2023) AFP - THIBAUD MORITZ

Mas os produtores que amargaram sérios prejuízos no último verão, o mais seco em mais de 30 anos no país, pressionam por uma solução imediata, ante ao risco de sofrerem novas perdas. As mudanças climáticas vão agravar ainda mais a situação, garante o pesquisador Franck Galland, especialista em gestão de risco e conflitos relacionados à água da Fundação para a Pesquisa Estratégica.

"Na França, conforme o modelo utilizado, estimamos que daqui a 20 anos, teremos uma baixa do fluxo nos rios de 10 a 20%, e do nível dos lençóis freáticos de 20 a 30%”, explica o autor de Guerre et eau (Guerra e Água, em tradução livre). "Claramente, o país entra num estado de semiaridez, a exemplo do que ocorre no norte da Itália, que desde o inicio do ano já tem uma queda da pluviometria de mais de 60% que já causa dificuldades econômicas importantes.”

Círculo vicioso perigoso

O problema é que não são apenas as mudanças climáticas que agravam a falta de água – o inverso também acentua o aquecimento do planeta, num círculo vicioso perigoso que ameaça a agricultura ao redor do globo. Nesta quinta (31), o governo francês apresenta um aguardado plano de gestão sustentável do recurso. Monoculturas dependentes da irrigação precisarão se diversificar, adverte Galland.

“Vamos ter que nos questionar sobre o futuro da cultura do milho na França, e em especial sobre a irrigação, que precisa ser mais econômica e inteligente. Temos que melhorar a infiltração da água no solo, com uma nova cultura dos solos, e não podemos fazer uma economia da retenção nos beneficiarmos das chuvas do inverno – até porque não sabemos o quanto vai continuar chovendo no inverno”, destaca. "Acabamos de ter um inverno particularmente seco. Isso vai nos levar a questões que precisarão de diálogo, de entendimento, de escuta”, avalia.

A seu favor, o projeto de megarreservatórios invoca um relatório do Escritório de Pesquisas Geológicas e Mineiras, que avaliou que a recuperação da água dos lençóis teria um “impacto desprezível” no ciclo da água no inverno, com uma queda de apenas 1% no fluxo dos rios. Mas o estudo não considerou a hipótese da evaporação das futuras reservas, nem a previsão de secas recorrentes na França, segundo a agência AFP.

O protesto no último sábado (25), que acabou com 31 pessoas feridas nos conflitos, ocorreu na sequência da maior conferência internacional da ONU em quase 50 anos para tratar sobre os riscos de uma “crise da água” no planeta, nas próximas décadas.

"Recolher a água da chuva, pode ser. Na escala do seu jardim ou da sua casa, pode ser uma excelente solução. Porém, entre as soluções baseadas na natureza, não podemos perturbar o curso natural das águas”, analisou o responsável pelo tema na organização Ação contra a Fome na França, Julien Eyrard, em entrevista à RFI. "Em relação à polêmica dos grandes reservatórios, eles podem ser uma solução pontual, à condição de não privar os rios da água que eles precisam. Senão, evidentemente, essa é não é uma boa solução”, salientou.

Mobilização pelo mundo

A construção de reservatórios é observada cada vez mais de perto por pequenos agricultores não só na França, como em muitos outros países. O protesto em Saint-Soline atraiu militantes do resto da Europa e até de outros continentes, conforme a porta-voz do coletivo Bassines Non Merci (Reservatórios: Não, Obrigado, em tradução livre), Adeline. As ONGs exigem a paralisação de todos os projetos na França.

"Veio gente de toda a Europa, mas também integrantes da Via Campesina, do Mali, do Chile, da Resistência Autóctone pelos Direito e Acesso à Água, do Canadá. Temos militantes de povos originários da Colômbia, militantes da luta ecologista pela água no Curdistão”, disse.

"O que vemos é que essa luta é internacional, porque é sempre o mesmo mecanismo de apropriação de um bem comum, que é a água, por uma minoria que, para completar, promove projetos que são contrários aos nossos valores: projetos capitalistas do agronegócio, só para se enriquecerem e sem pensar na população local”, completa Adeline.

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