Acessar o conteúdo principal

"Não são apenas jihadistas, Estados também impedem acesso à ajuda humanitária", denuncia diretora de ONG

Desde o início de 2023, pelo menos 62 trabalhadores humanitários foram mortos em todo o mundo, revelou nesta quinta-feira (17) as Nações Unidas, que se preparam para lembrar os 20 anos do sangrento ataque contra sua sede em Bagdá. Todos os anos, a ONU celebra o Dia Mundial da Ajuda Humanitária em 19 de agosto, data desse atentado suicida que vitimou 22 pessoas, entre elas o diplomata brasileiro Sergio Vieira de Mello, representante especial da ONU no Iraque.

Uma mulher vítima de deslocamento forçado se senta ao lado de um caminhão do Programa Mundial de Alimentos, na cidade de Bentiu, no Sudão do Sul, considerado o país mais perigoso para trabalhadores humanitários. Em 6 de fevereiro de 2023.
Uma mulher vítima de deslocamento forçado se senta ao lado de um caminhão do Programa Mundial de Alimentos, na cidade de Bentiu, no Sudão do Sul, considerado o país mais perigoso para trabalhadores humanitários. Em 6 de fevereiro de 2023. © SIMON MAINA / AFP
Publicidade

Andréia Gomes Durão, da RFI

Além dos 62 trabalhadores humanitários mortos desde o início do ano em zonas de conflito, 84 ficaram feridos e 34 foram sequestrados, de acordo com o banco de dados de segurança compilado pela consultoria britânica Humanitarian Outcomes. Durante todo o ano de 2022, o número desses assassinatos chegou a 116.

Pelo menos dois dos trabalhadores humanitários mortos este ano pertenciam à ONG Médicos Sem Fronteiras (MSF). Eles foram assassinados por jihadistas em Burkina Faso em 8 de fevereiro.

“E ainda existem muitos outros incidentes, outros riscos, com que continuamos a nos confrontar em muitos campos de intervenção: o risco de assassinato, que é real, mas também há sequestros, prisões. É um conjunto de riscos de que devemos tentar proteger nossas equipes o tempo todo”, alerta Claire Magone, diretora-geral do MSM na França.

“A natureza dos riscos muda”

A diretora da ONG explica ser difícil fazer comparações e apenas afirmar que a violência tenha aumentado, quando ela prefere destacar que é “a natureza dos riscos que muda”.

Claire também faz questão de desmistificar que a falta de segurança a que os trabalhadores humanitários são expostos esteja associada apenas a grupos criminosos, a jihadistas.

“Os contextos são diferentes uns dos outros, então, obviamente, os grupos jihadistas constituem um tipo de ameaça. Mas há também Estados que impõem climas de intimidação aos trabalhadores humanitários, dificultando igualmente seu trabalho e o acesso da população a esses serviços”, ela enfatiza.

Essa falta de acesso e as dificuldades impostas para se estabelecer um espaço de trabalho são apontados pela diretora da ONG como um outro importante desafio para a ajuda humanitária. Ela cita o caso do Afeganistão, onde pelo menos metade da população é vítima de algum tipo de exclusão. Em sua opinião, os migrantes também são um exemplo de comunidade privada de ajuda, por serem criminalizados, considerados indesejáveis, e encontram, com frequência, um fim trágico no Mar Mediterrâneo.

“Um trabalho formidável”

O perigo de trabalhar sob a ameaça da violência de facções criminosas é a realidade de Irene Manterola, coordenadora da ONG Médicos do Mundo (MdM) em Bogotá, responsável por assegurar o acesso à saúde de diversas comunidades vulneráveis na Colômbia.

“Os grupos armados impõem cada vez mais restrições ao deslocamento da população. Então nós trabalhamos em um contexto em que o acesso humanitário é cada vez mais complicado, porque há cada vez mais grupos buscando manter o controle, para evitar a circulação de informações. É realmente muito difícil. Os meios de cooperação infelizmente também são cada vez mais reduzidos, porque em outros lugares também há muita crise humanitária”, relata Irene.

Irene Manterola, coordenadora da ONG Médecins du Monde (MdM) em Bogotá, Colômbia, em visita a comunidades locais.
Irene Manterola, coordenadora da ONG Médecins du Monde (MdM) em Bogotá, Colômbia, em visita a comunidades locais. © Médecins du Monde

Ela alerta para o fato dos trabalhadores locais, que correspondem a até 90% das ajudas humanitárias, serem os mais expostos aos riscos da falta de segurança, e atuam com orçamentos geralmente ainda mais reduzidos.

“Eu acho que eles fazem um trabalho formidável, porque as comunidades mais isoladas precisam ser acompanhadas. O acesso à saúde é essencial, o que significa que nossas equipes médicas devem permanecer nessas comunidades, ficando ainda mais expostas [à violência]”, continua Irene.

Todos os anos, mais de 90% dos mortos em ataques contra trabalhadores humanitários são trabalhadores locais, sublinha a ONG International Safety Organization (Inso).

O lugar mais perigoso

Por muitos anos, o Sudão do Sul foi classificado como o lugar mais perigoso para trabalhadores humanitários. Até 10 de agosto, 40 ataques contra trabalhadores humanitários mataram 22 pessoas, afirma a agência humanitária das Nações Unidas (OCHA).

O Sudão vem logo atrás, com 17 ataques a trabalhadores humanitários matando 19 desde o início do ano. Números tão altos não eram registrados neste país desde o conflito de Darfur entre 2006 e 2009.

“O Sudão é um contexto extremamente perigoso para nossas equipes. Mas há contextos de que falamos menos, porque não têm a aparência de uma guerra declarada, mas onde é extremamente perigoso viver e tentar prestar assistência às populações em perigo. Refiro-me especialmente ao Haiti, onde há realmente um nível de caos e violência permanente”, compara Claire Magone, do MSM.

Ela descreve que em Porto Príncipe, cenário recente da ação violenta de facções criminosas contra a população, grupos chegam a controlar o funcionamento de hospitais.

Outros países onde trabalhadores humanitários perderam a vida incluem a República Centro-Africana, Mali, Somália, Ucrânia e Iêmen.

“Além da compreensão humana”

“Os riscos que enfrentamos estão além da compreensão humana”, lamenta um relatório compilado por ONGs como a Médicos do Mundo, Action contre la faim et Handicap International, com a ajuda da União Europeia.

O Dia Mundial da Ajuda Humanitária coincide este ano com a comemoração dos 20 anos do ataque ao Canal Hotel em Bagdá, onde ficava a sede da ONU na capital iraquiana. O ataque, cometido em meio ao caos da invasão americana no país, que derrubou Saddam Hussein, matou 22 pessoas, incluindo o brasileiro Sergio Vieira de Mello, e feriu cerca de 150 trabalhadores humanitários locais e estrangeiros.

"A cada ano, quase seis vezes mais trabalhadores humanitários são mortos cumprindo seu dever em comparação com aqueles que morreram naquele dia sombrio em Bagdá, e a esmagadora maioria é de trabalhadores humanitários locais", declarou o chefe de Assuntos Humanitários da ONU, Martin Griffiths. “A impunidade por esses crimes marca nossa consciência coletiva.”

Com um número crescente de conflitos em todo o mundo, a ONU informa que atua para ajudar cerca de 250 milhões de pessoas atualmente, dez vezes mais do que em 2003, ano do atentado.

(Com informações da AFP)

NewsletterReceba a newsletter diária RFI: noticiários, reportagens, entrevistas, análises, perfis, emissões, programas.

Acompanhe todas as notícias internacionais baixando o aplicativo da RFI

Compartilhar :
Página não encontrada

O conteúdo ao qual você tenta acessar não existe ou não está mais disponível.