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"Não podia matar inocentes": soldados desertam do Exército diante da violência do governo em Mianmar

Desde o golpe militar que tirou a líder Aung San Suu Kyi do poder em Mianmar, em fevereiro, a repressão contra opositores da Junta Militar não parou de se intensificar, com mais de mil civis mortos. Diante da violência do novo governo, tem crescido o número de soldados que desertam do Exército, uma decisão que os coloca sob risco de prisão.

O grupo People's Defense Force (Forças de Defesa do Povo) começou a se organizar em fevereiro de 2021, após o golpe militar que tomou o poder em Mianmar.
O grupo People's Defense Force (Forças de Defesa do Povo) começou a se organizar em fevereiro de 2021, após o golpe militar que tomou o poder em Mianmar. STR AFP
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Cyrielle Cabot, da France24

São cerca de 2.000 soldados que abandonaram as fileiras do Tatmadaw, o exército birmanês, nos últimos meses, segundo o grupo de resistência à Junta Militar. Embora o número seja pequeno se comparado aos 350.000 membros do exército, o movimento pode indicar uma rota de enfraquecimento do poder militar no país.

Na memória de Yey Int Thwe*, 25 de julho permanece gravado como a data em que "tudo mudou". Naquele dia, o soldado de 30 anos e uma dúzia de colegas invadiram casas no sudeste de Rangum, a maior cidade birmanesa.

Como membros das forças de segurança de Tatmadaw, o exército birmanês, faziam uma operação para prender pessoas suspeitas de organizar uma manifestação contra o golpe de 1 de fevereiro. Durante a operação, viu seu próprio primo armado e algemado.

“Foi um choque. Passei minha infância ao lado daquele homem e, de repente, tive que lutar contra meu primo e prendê-lo. E por quê? Porque ele ousou expressar suas ideias", contou o soldado durante uma vídeochamada com a France 24. "Foi quando eu entendi que tinha que abandonar o Exército.

Na mesma noite, de volta ao seu quartel, ele começou a elaborar um plano de desertar. Quase cinco meses depois, ele vive escondido na selva, na fronteira entre Mianmar e Tailândia.

"Eu me alistei no Exército para proteger a população"

Como ele, um total de 2.000 soldados desertaram e se juntaram à oposição desde o golpe do General Min Aung Hiaing.

“O Tatmadaw nunca foi tão odiado como hoje”, considera Phil Robertson, vice-diretor do departamento da Human Rights Watch na Ásia. Todos os anos, há membros do Exército desiludidos com as condições de vida e de trabalho. Mas desta vez existe também uma crise moral: eles não querem mais apoiar a junta.

Todos os desertores entrevistados compartilham a mesma motivação: a recusa de atacar a população enquanto o país está mergulhado em uma guerra civil.

Nos últimos meses, mais de 1.300 civis foram mortos pelas forças de segurança birmanesas, de acordo com a Associação de Assistência aos Prisioneiros Políticos. Um relator da ONU relatou "prováveis crimes contra a humanidade e crimes de guerra" cometidos pela junta.

"Em 2015, fiz a segurança de postos de votação que permitiram que Aung San Suu Kyi fosse eleita democraticamente". Hoje, me pedem para atirar em seus defensores", lamentou Kaung Htet Aung*, entrevistado pela França 24. E ele reitera: "Eu me alistei no exército para proteger a população, não para lutar contra ela".

Aos 29 anos, nove deles como sargento na Tatmadaw, ele decidiu aceitar os riscos e se juntar ao movimento de desobediência civil. "Normalmente, os soldados não são autorizados a se demitir. Quando você se alista no Exército, é um compromisso vitalício", diz ele. "A deserção é punível com prisão ou pior. Sem mencionar o risco de represálias para nossos parentes", explica.

Rede de apoio para sair

O caminho  Kaung Htet Aung* está cheio de armadilhas. Em 6 de maio, o jovem fugiu de sua base militar, mas sua viagem foi encurtada. Apenas algumas horas após sua partida, ele foi ferido enquanto dirigia uma motocicleta. Detido, ele foi enviado a uma prisão militar, onde passou três meses. Em agosto, quando a junta decidiu lhe dar uma segunda chance, ele fugiu novamente.

Desta vez ele pôde contar com a ajuda dos Soldados do Povo, uma organização formada por ex-soldados que oferece ajuda logística a todos aqueles que desejam desertar.

"Assim que saí da prisão, entrei em contato com eles através das redes sociais", explica Aung. "Algumas semanas depois, eles me ajudaram a fugir".

Tudo é feito pelas redes sociais, como explicou um porta-voz da associação: "Os soldados ou seus parentes entram em contato conosco. Assim que verificamos suas informações, encontramos uma passagem de ônibus para levá-los às zonas livres [uma área de fronteira controlada por grupos étnicos armados]. Uma vez lá, a associação os ajuda a encontrar lugar para ficar e como garantir suas necessidades básicas".

"Estou tão feliz por ser livre", sorri Kaung Htet Aung, apesar da chuva torrencial que cai sobre o abrigo improvisado de onde ele conversa com a France 24.

O jovem atualmente ajuda na resistência, colocando suas habilidades militares a serviço dos opositores do governo. "Eu costumava fazer armas no Tatmadaw. Hoje, eu faço isso para lutar contra eles. Eu também ensino os jovens, recém-inscritos nas milícias, a como lidar com eles", conta. Antes de acrescentar, com amargura: "Somente pela força conseguiremos acabar com isso".

Propaganda para atrair mais resistentes

O apoio logístico não é a única missão dos Soldados do Povo. A organização também trabalha com a campanha de comunicação para encorajar aqueles que permanecem nas fileiras de Tatmadaw a se juntarem a eles.

Todos os domingos de manhã, o grupo organiza videoconferências transmitidas ao vivo nas redes sociais. A cada semana, um tema diferente é discutido com figuras do movimento pró-democracia e também soldados que desertaram. Além dessas reuniões, o grupo inunda as redes sociais com mensagens e chega a contatar diretamente os soldados e seus parentes.

"Esta propaganda tem um papel importante", diz Phil Robertson. "Não só tranquiliza aqueles que estão pensando em desertar, mas também os pressiona e os encoraja a dar o mergulho".

Foi graças a esta propaganda que a irmã de Yey Int Thwe conseguiu fazer contato com o movimento. "O Tatmadaw sabe muito bem que os Soldados do Povo existem. Para nos impedir de entrar em contato com seus membros, eles monitoram nossos telefones de muito perto", diz Yey Int Thwe. "Minha irmã descobriu sobre a organização através de uma palestra. Ela enviou uma mensagem e depois me disse onde eu deveria ir para que eu pudesse escapar para uma zona livre".

Hoje, ele ajuda o movimento construindo casas no meio da selva para abrigar os futuros soldados. "Vivo de doações aos Soldados do Povo e passo meus dias cortando bambu", ele ri.

Mas enquanto ele diz que agora se sente seguro, ele gostaria de convencer sua família a se juntar a ele. "Durante todo o tempo em que estive em fuga, eles temiam por mim. Agora eu tenho medo por eles. Temo que eles sofram as conseqüências da minha escolha", relata.

Exército tem dificuldade para recrutar

O número de deserções ainda é pequeno quando comparado com as 350.000 pessoas que compõem o Tatmadaw, de acordo com estimativas oficiais. No entanto, cada um deles é celebrado como uma vitória da resistência.

"Por enquanto, o impulso é muito pequeno para desempenhar um papel importante", diz Phil Robertson. "Mas cada partida ajuda a aumentar a conscientização e isto pode enfraquecer a junta e sua liderança".

"Diante destas deserções, o exército não está parado. E está reagindo como costuma fazer, com força", explica o vice-diretor do departamento asiático da Human Rights Watch, relatando a intimidação recorrente dos soldados.

Outro sinal da crescente antipatia do exército é que o Tatmadaw vem lutando para recrutar há vários meses. Ao ponto de, de acordo com o site birmanês Myanmar Now, vários soldados aposentados e oficiais de alta patente foram solicitados a voltar ao serviço.

Segundo outro site birmanês, Irrawady, o exército também tornou o treinamento militar obrigatório para os filhos de seu pessoal, a partir dos 14 anos de idade, a fim de criar uma força de reserva. A medida é contrária ao direito internacional.

"A junta deve entender que mesmo nas suas próprias fileiras, as pessoas não a apóiam mais", conclui Yey Int Thwe. "Ela deve devolver o poder ao povo e devemos iniciar uma grande reforma militar". O exército deve voltar ao seu propósito primordial: proteger seu povo".

* Os nomes foram alterados para garantir a segurança dos entrevistados.

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