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Pouca comida e troca de fralda cronometrada: França tem novas denúncias de práticas abusivas em creches

Porções de refeições racionadas, cuidados cronometrados, prática de “overbooking”, profissionais sobrecarregados e mal-pagos: dois livros publicados nesta semana na França descrevem as práticas abusivas de certas creches particulares, reflexo de uma corrida por lucros maiores, em detrimento do bem-estar das crianças. 

Dois livros de jornalistas franceses contam sistema de práticas abusivas em creches na França.
Dois livros de jornalistas franceses contam sistema de práticas abusivas em creches na França. AFP/Loïc Venance
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Os pais franceses começaram o ano escolar com uma má notícia: o fato de pagar caro por uma creche não garante que as crianças estejam sendo bem tratadas. Isso é o que mostram as investigações reveladas em dois livros lançados nesta semana, em plena volta às aulas no país: "Babyzness. Crèches privées : l'enquête inédite" ("Babyzness. Creches particulares: investigação inédita", em tradução livre), de Berangère Lepetit e Elsa Marnette, e "Le prix du berceau" ("O preço do berço", também sem versão em português), de Daphné Gastaldi e Mathieu Périsse. 

"Nós tentamos demonstrar que há 20 anos existe uma obsessão para a criação de vagas porque, no começo dos anos 2000, 10% das crianças conseguiam uma vaga (na creche). Agora, estamos por volta dos 20%, e isso foi feito em detrimento dos cuidados com as crianças e, às vezes, de sua segurança", diz a autora de Babyzness, Elsa Marnette, em entrevista à RFI.

"Nós começamos a receber alertas de pais que se preocupavam com o que acontecia nas creches de seus bebés. Tudo começou assim, através de testemunhos de pais", explica a jornalista. "Teve o caso de um pai cujo filho foi encontrado fora da creche particular na qual estava inscrito", diz. A criança teria ficado uma hora fora do estabelecimento, sem vigilância, por falta de atenção das cuidadoras.

"Nós encontramos pais que foram buscar os filhos na saída da creche e os filhos apresentavam machucados, hematomas, e na creche ninguém era capaz de explicá-los", afirma. 

Já Daphné Gastaldi e Mathieu Périsse contam em seu livro sobre uma creche no departamento Bouches-du-Rhône, no sul da França, de onde algumas crianças saíam "com fome". Os pais acabaram descobrindo que "faltavam entre três e cinco refeições, dois dias por semana", durante vários meses. A empresa responsável pelo refeitório alegou “um erro humano”.

Outro estabelecimento, perto de Lyon, costuma praticar “overbooking" – tal como algumas companhias aéreas –, acolhendo mais crianças do que o permitido por lei. Mesmo assim, um administrador de uma das creches do grupo insistiu que estava preocupado com a “segurança”, aos autores do livro.

Rentabilidade

Estes dois livros chegam às livrarias apenas cinco meses depois da publicação de um relatório da Inspecção-Geral dos Assuntos Sociais (Igas) sobre a prevenção de abusos em creches, que já indicava os problemas no sistema privado de creches.  

“Estamos num sistema em que, devido ao interesse por rentabilidade”, transforma as crianças “em números, mas onde era esperado um serviço para pessoas, acima de tudo", declarou o jornalista Mathieu Périsse. Para o livro, ele realizou quase 200 entrevista e ouviu depoimentos de executivos, funcionários e pais. 

“Estas empresas, algumas das quais apoiadas por fundos de investimento, implementam medidas para otimizar a gestão de suas creches”, acrescenta, citando o exemplo de alguns empregados de creches entrevistados que deviam cronometrar o tempo das trocas de fraldas. 

"É um setor muito pouco subvencionado pelo Estado e que aplica uma lógica de rentabilidade", diz Elsa Marnette. "Nós conversamos muito com diretoras que nos contaram que eram pressionadas a respeitar o orçamento, economizar no número de refeições, no número de fraldas para as crianças. Não podemos generalizar, mas nós queremos alertar sobre esses disfuncionamentos encontrados em certos estabelecimentos", diz. 

Para aumentar o número de funcionários, as exigências de diploma dos cuidadores diminuiu, explica. "São coisas que contribuem à degradação do acolhimento." 

Vinte anos após a abertura do setor à iniciativa privada, as creches particulares oferecem 80 mil vagas, ou seja, cerca de 20% dos lugares disponíveis no mercado, e alcançam um volume de negócios entre € 1,1 e 1,4 mil milhões, segundo um relatório do escritório do primeiro-ministro publicado em 2021.

As creches particulares recebem subvenções de € 13.484 do governo francês por criança para funcionarem.

Quatro grandes grupos dominam o mercado: Grandir (Les Petits Chaperons Rouges), Babilou, La Maison Bleue, People & Baby. Este último foi o centro das atenções em junho de 2022, após a morte de um bebê de 11 meses em Lyon.

Na sequência desta tragédia, o executivo encarregou o Igas de investigar a qualidade do serviço e a prevenção de abusos em creches, tanto particulares, como públicas.

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