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Aborto na Polônia: Quando a escolha deixa de ser opção para a mulher

Defensores dos direitos das mulheres e milhares de jovens prometem seguir lutando contra o endurecimento da lei antiaborto que entrou em vigor na última quarta-feira na Polônia. Os poloneses consideram o veredito uma violação dos direitos humanos e um sinal de que o país está regredindo. Não existe a possibilidade de recurso ou reexame da decisão do Tribunal Constitucional. As próximas eleições presidenciais na Polônia serão em 2023.

Polônia se revolta contra nova lei do aborto.
Polônia se revolta contra nova lei do aborto. AFP - WOJTEK RADWANSKI
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Letícia Fonseca-Sourander, correspondente da RFI em Bruxelas

“Meu corpo, minha escolha”, “Eu penso, eu sinto, eu decido”, “A revolução tem um útero”, “Você tem sangue nas mãos”: Esses foram alguns dos slogans entoados pelos milhares de poloneses que protestaram pelas cidades do país, desafiando as restrições impostas devido à Covid-19.

A Polônia, uma das nações mais católicas da União Europeia, praticamente proibiu o aborto após decisão do Tribunal Constitucional – o equivalente ao Supremo Tribunal Federal no Brasil - que entrou em vigor na semana passada. A partir de agora, a interrupção voluntária da gravidez não será permitida em casos de má-formação do feto. Esta é a causa mais comum de aborto na Polônia.

A comissária para os Direitos Humanos do Conselho da Europa, Dunja Mijatovic, criticou a sentença e afirmou que “eliminar o fundamento de quase todos os abortos legais na Polônia equivale praticamente a proibi-los e viola os direitos humanos. Como consequência, as polonesas serão forçadas a viajar para outros países ou fazer abortos clandestinos”.

As organizações de proteção dos direitos civis denunciam a falta de independência do Tribunal Constitucional da Polônia – 11 dos 12 juízes foram nomeados pelo partido governista, o ultranacionalista Lei e Justiça (PiS). Além disso, a presidente da corte, Julia Przylebska, é amiga do atual vice-primeiro-ministro e líder do PiS, Jaroslaw Kaczynski.

Segundo a lei, que tem mais de 200 páginas, permitir o aborto por causa de defeitos congênitos viola a Constituição polonesa. A interrupção da gravidez na Polônia só será permitida em casos de estupro, incesto ou se houver ameaça à vida da mulher. Nas ruas de Varsóvia, Cracóvia, Lodz, Wroclaw, Gdansk, Poznan, e em dezenas de outras cidades, milhares de jovens gritam “Isto é Guerra” e “Inferno das Mulheres”.

Elas pressionam o governo, que tenta endurecer a legislação antiaborto desde quando chegou ao poder em 2015, e que tornou a vida das mulheres um inferno. A ideia é que agora elas infernizem o governo.

"Revolução é feminina"

As manifestações contra a agenda sexista do governo de extrema direita devem voltar às ruas em breve, depois dos três dias intensos de marcha na semana passada. Nos protestos, o raio vermelho, símbolo do movimento feminista na Polônia, está por toda parte; assim como os guarda-chuvas pretos, que são símbolo da luta pelo direito ao aborto.

O símbolo do movimento Greve Nacional das Mulheres na Polônia (esq) e Jovens protestam nas ruas contra a restrição do aborto no país (direita)
O símbolo do movimento Greve Nacional das Mulheres na Polônia (esq) e Jovens protestam nas ruas contra a restrição do aborto no país (direita) © Fotomontagem RFI/Adriana de Freitas/AP/wikipédia

Semanas antes da decisão do Tribunal Constitucional, Klementyna Suchanow, ativista e uma das fundadoras do Greve Nacional de Mulheres na Polônia, o principal movimento que organiza os protestos, declarou: “Nós estamos entrando na segunda fase da revolução, e todos estão convidados”.

Na semana passada, a ativista foi presa por ter entrado no terreno do Tribunal Constitucional na capital Varsóvia para pregar um pôster na porta de entrada. Segundo Suchanow, que já foi liberada, o cartaz celebrava a recente lei de legalização do aborto na Argentina e expressava esperança para que a Polônia fosse o próximo país a aprovar a prática.

Pressão da União Europeia e ONGs de Direitos Humanos

Diante desta violação dos direitos fundamentais, uma das principais questões é: o que a União Europeia poderia fazer? “Nada ou bem pouco”, explica Sébastien Platon, professor de Direito Público da Universidade de Bordeaux, na França, em um artigo de opinião publicado no jornal Le Monde. Em 2017, Bruxelas acionou um procedimento contra a Polônia, o artigo 7 do Tratado de Lisboa, que contempla sanções aos Estados membros se houver um risco claro de violação grave dos valores em que se baseia a União Europeia. Foi a primeira vez que o bloco europeu acionou o artigo 7 na sua história.

No entanto, três anos depois, o processo de punição política ainda não deu resultados e está condenado ao fracasso, salienta Platon, “uma vez que a imposição de sanções necessita a unanimidade de todos os países do bloco, com exceção daquele que está sendo visado pelo processo.” A Polônia conta com o apoio da Hungria, que também é alvo de sanções políticas da União Europeia, desde 2018.

No mês passado, a Anistia Internacional pediu a Portugal, que está no comando da presidência rotativa da União Europeia, para “analisar a degradação do Estado de direito na Polônia e o seu impacto sobre os diretos humanos da sua população.” Recentemente, o Parlamento Europeu aprovou uma resolução em que descreve a “influência imprópria” do governo polonês na decisão do Tribunal Constitucional em banir quase totalmente o aborto. No documento, o legislativo europeu chega a admitir que o Estado de direito no país “colapsou”.

Cartaz em protesto das mulheres: ”Quem dera eu pudesse abortar meu governo”.
Cartaz em protesto das mulheres: ”Quem dera eu pudesse abortar meu governo”. © ©REUTERS/Kacper Pempel

Governo polonês defende valores conservadores

Atualmente são feitos menos de 2 mil abortos legais na Polônia a cada ano e cerca de 200 mil mulheres interrompem a gravidez clandestinamente ou no exterior. A proibição quase total do aborto no país recebeu críticas até mesmo dos católicos, que são 92% dos 38 milhões de poloneses. O líder do PiS, Jaroslaw Kacszynski, reagiu  dizendo que “nós devemos defender as igrejas polonesas a todo custo.”

Magena Kalinowska, 45 anos e mãe de quatro filhos, vai à missa aos domingos com a família, mas não concorda com a decisão do Tribunal Constitucional. “Falo como mãe, eu não estou de acordo com essa lei. Nós, mulheres, devemos ter a escolha. Nós devemos ser as responsáveis pela decisão de manter a gravidez de um feto com má-formação ou abortar. Mas esta é uma resposta subjetiva; no meu caso, eu não concordo que o governo decida por nós. Além disso, acho que a Igreja polonesa tem mais força do que deveria.” Magena, que nasceu perto de Bialystok no leste da Polônia, e votou no PiS.

Milhares de poloneses desafiaram as restrições impostas pela pandemia protestando nas ruas do país.
Milhares de poloneses desafiaram as restrições impostas pela pandemia protestando nas ruas do país. AFP - WOJTEK RADWANSKI

 

Na União Europeia, Polônia e Malta – que proíbe o aborto em qualquer circunstância – são os bastiões antiaborto do bloco. Até mesmo a Irlanda, com forte tradição católica e que tinha uma das legislações mais rigorosas do mundo, descriminalizou o aborto em 2018 após um referendo realizado no país. Em uma votação histórica, a vitória do sim foi um reconhecimento dos direitos das irlandesas, que até poucos anos atrás eram recriminadas pelo uso de anticoncepcionais.

O que pensa a nova geração

A polonesa Kasia Nordynska, 21 anos, faz MBA em Gestão Empresarial na KU Leuven e concedeu uma entrevista à RFI Brasil para falar sobre a situação no seu país, a limitação dos direitos femininos e como sua geração reagiu à imposição desta nova lei que torna o aborto praticamente impossível na Polônia.

Kasia Nordynska diz que a lei antiaborto que entrou em vigor na Polônia é uma enorme decepção.
Kasia Nordynska diz que a lei antiaborto que entrou em vigor na Polônia é uma enorme decepção. © Arquivo pessoal

“Essa idéia de mudar a lei sobre aborto não é nova. Desde 2015, quando o partido Lei e Justiça (PiS) chegou ao poder, este assunto começou a ganhar destaque. Logo depois daquelas eleições, os protestos começaram. A discussão sobre esta questão desapareceu por um tempo e em outubro do ano passado foi retomada. Foi então que tudo começou a mudar a cada dia. Parece que o governo voltou a falar sobre o aborto para desviar a atenção, para que a gente pense menos nos erros que eles cometeram durante a pandemia”, comentou.

Para ilustrar a rejeição da população à essa iniciativa do governo ultraconservador, Kasia cita uma pesquisa onde 75% dos poloneses acreditam que o aborto deveria ser legalizado. “Durante as últimas eleições presidenciais, em julho passado, o país se dividiu no segundo turno: 51% votou no candidato conservador – Andrzej Duda foi reeleito – e 48% no candidato da oposição liberal pró-europeu. Ainda assim, vale lembrar que, no total, 75% dos eleitores não concordam com o endurecimento da lei antiaborto.”

“Mais de 80% dos abortos feitos até hoje na Polônia são por má-formação do feto. Isso é muito. De agora em diante, as mulheres que precisarem abortar vão estar em uma situação muito difícil porque elas não tem dinheiro e não terão ninguém do governo para ajudá-las. Já as mulheres que puderem viajar para outros países para interromper a gravidez vão ter a sensação de estarem fugindo, pois não poderão abortar em seu próprio país”, desabafa a estudante. “Esta geração que tem hoje 16, 17 anos, que está na escola e ainda não pode votar, são estas jovens que mais vão sofrer por causa deste tipo de lei no futuro próximo”.

Quando questionada sobre a importância da Igreja na Polônia, Kasia explicou que o papel da instituição sempre foi muito grande. “Todos na minha geração foram batizados, fizeram a primeira comunhão e era obrigatório ter aula de religião na escola. Não era perguntado se você acreditava em Deus ou não. Ninguém perguntava isso. Não era possível falar abertamente sobre isso. Quando eu era criança, eu tinha medo de pensar se Deus existia ou não. Cresci com esse pensamento que a Igreja estava lá, sempre me olhando. Hoje, algumas pessoas que estão tendo filhos na Polônia começam a questionar. Eles já não querem batizar as crianças, muito menos mandá-las para a aula de religião, que já não é mandatória. O país está descobrindo muitas histórias sobre a Igreja na Polônia que são exatamente o contrário do que deveriam ser.”

Sobre a resistência do polonês em ser mais aberto, a estudante explica o porque da dificuldade de se conviver com o que é diferente, com o que é estrangeiro. “A Polônia é um país muito homogêneo, com poucas pessoas de outros países. Na minha época, todo mundo na escola era branco, polonês, com nome polonês, todos os pais e avós eram poloneses. Todo mundo era católico, batizado. Então, é muito difícil falar com uma pessoa que só vive dentro de uma comunidade fechada. O governo fala que imigrantes são perigosos, a Igreja está falando que a comunidade LGBT+ é um perigo. Como você pode convencer uma pessoa que isso não é verdade? Você pode conversar com outra pessoa que não é branca, nem polonesa, que é LGBT+, que acredita em outro Deus e se tornar amiga dela. Mas talvez o polonês mais fechado não irá se convencer rapidamente porque ela não tem experiência de conhecer o outro, que é diferente dele. Ele não tem abertura.”

E como explicar a divisão na última eleição presidencial, que reelegeu o governo ultranacionalista Lei e Justiça (PiS)? “O leste da Polônia – que faz fronteira com a Ucrânia e Belarus – é mais pobre, mais conservador e votou para o PiS, já o oeste do país é pró-europeu. É clara essa divisão que nós tivemos por 123 anos, quando a Polônia era dividida entre Alemanha (oeste da Polônia) e Rússia (leste do país). As pessoas mais jovens votam em nomes mais liberais, enquanto os poloneses com mais de 60 anos, que viveram no comunismo, têm uma tendência a votarem em candidatos mais conservadores. O comunismo foi um período muito difícil e agora existe essa divisão enorme no país. Depois do fim do regime comunista, por exemplo, muitos poloneses disseram que nunca mais votariam na esquerda. Ficou, em muitos, como uma ferida muito grande. Agora, esses partidos que não são contra o aborto, contra a comunidade LGBT+ , têm pouca popularidade no país.”

Diante desse contexto, o que esperar do futuro? “Depois de todo esse tempo, nós, os jovens, só esperamos uma coisa: que esse governo desapareça. Nós cansamos, ou pelo menos eu e meus amigos. A gente não acredita mais que eles podem melhorar. Achamos que até o final do mandato, eles vão mentir, vão ignorar o que o povo quer, o que o povo está pedindo", diz Kasia Nordynska. "Nós perdemos a confiança neste governo. Não acreditamos mais nestes políticos porque eles já tiveram tantas ocasiões para mostrar o lado humano e optaram por não mostra-lo.”

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