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Ação do PL serve de 'cloroquina eleitoral' para base radicalizada, diz cientista político

O Partido Liberal (PL), de Jair Bolsonaro, pediu nessa terça-feira (22) ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a anulação dos votos computados em 280.000 urnas eletrônicas usadas no segundo turno, em 30 de outubro, alegando supostos erros que teriam dado a vitória a Lula.

Partidários do presidente derrotado, Jair Bolsonaro, protestam no Rio de Janeiro, em 15 de novembro de 2022, contra o resultado da eleição presidencial brasileira.
Partidários do presidente derrotado, Jair Bolsonaro, protestam no Rio de Janeiro, em 15 de novembro de 2022, contra o resultado da eleição presidencial brasileira. AP - Bruna Prado
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“Essa ação serve basicamente para incentivar e alimentar o que eu chamaria de uma cloroquina eleitoral, um terraplanismo eleitoral dos eleitores mais radicalizados do presidente, que não aceitam o resultado das urnas e que estão há três semanas manifestando”, analisa o economista e cientista político Thomás Zicman de Barros, pesquisador-associado do CIVIPOF (Centro de Pesquisas Políticas) do Instituto de Ciências Políticas de Paris.

Para o especialista em questões relacionadas à extrema direita e ao populismo, a resposta do presidente do TSE, ministro Alexandre de Moraes, que disse que o requerimento só seria contemplado se incluísse também o primeiro turno da votação, “aponta uma contradição” do PL “que só aceita as urnas quando interessa”. A denúncia se refere a cerca de 280.000 urnas eletrônicas de modelos anteriores a 2020. Com a anulação requisitada, o PL sustenta que o atual presidente teria sido reeleito "com 51,05% dos votos válidos contra 48,95% de Lula".

Jair Bolsonaro não admitiu explicitamente o resultado, mas autorizou a transição de poder. Thomás de Barros, coautor do livro "Do que falamos quando falamos de populismo", não tem dúvida de que essa “ação do PL acontece por conta de uma pressão, senão direta do Bolsonaro, sem dúvida do seu círculo mais próximo” do presidente. O cientista político também acredita que tanto Bolsonaro quanto o PL sabem que isso não vai mudar o resultado da eleição, mas que o presidente precisa continuar politicamente relevante, inclusive para enfrentar os 58 processos que tem contra ele.O cientista político acha que a comparação feita com frequência entre Bolsonaro e Trump continua relevante.

Por fim, ele diz que há uma preocupação com a segurança no dia da posse de Lula, em 1° de janeiro, “porque o bolsonarismo adicionou um elemento de violência muito grande na política brasileira, que não havia antes”.

Confira a entrevista completa de Thomás Zicman de Barros:

RFI: Como você analisa essa ação do PL?

Thomás de Barros: Essa ação do PL, o partido do Valdemar Costa Neto que hoje abriga o presidente derrotado Bolsonaro, na verdade, serve basicamente para incentivar e alimentar o que eu chamaria de uma cloroquina eleitoral, uma terraplanismo eleitoral dos eleitores mais radicalizados do presidente, que não aceitam o resultado das urnas e que estão há três semanas tentando fazer manifestações, bloqueando estradas no Brasil. Claramente é uma jogada do presidente do PL, Valdemar Costa Neto, uma figura bastante controversa da política nacional, para tentar agradar a base bolsonarista e aumentar o seu capital político nesse momento em que estão em jogo nessa transição dos governos as composições das comissões na Câmara. Basicamente é isso. Ele quer agradar a ala bolsonarista no momento de radicalização. O Bolsonaro perdeu e para continuar relevante politicamente, ele precisa mobilizar as suas bases até para conseguir se proteger de uma série de processos que vão se abrir contra ele. Então, o Valdemar agrada essa base para também aumentar o poder de barganha do PL na Câmara Federal e, enfim, no Congresso em geral. O PL também tem uma grande base de senadores.

O presidente Jair Bolsonaro estaria por trás dessa ação do PL?

Eu não tenho dúvida que essa ação do PL acontece por conta de uma pressão, senão direta do Bolsonaro, sem dúvida do seu círculo mais próximo. O Valdemar Costa Neto, não tomaria essa atitude por vontade própria. Aliás, o que corre no noticiário brasileiro é que, inclusive, o Valdemar teria feito uma sinalização aos ministros do Supremo Tribunal Federal, dizendo que ele mesmo não acredita nessa cloroquina eleitoral, mas que faz isso por estar sendo pressionado por essas alas radicalizadas do PL.

O presidente do STE disse que só aceitaria e analisaria a ação se o primeiro turno fosse incluído. Você acredita que o PL fará essa modificação?

O que o Alexandre de Moraes fez foi apontar uma contradição, isto é, o fato de que essa ação, protocolada pelo Partido Liberal, falar apenas dos votos no segundo turno da eleição presidencial. O que o Alexandre aponta é: vocês criticam o uso das urnas eletrônicas, mas foram as mesmas urnas utilizadas no primeiro turno. Um primeiro turno em que o PL, o partido do Valdemar Costa Neto, elegeu 99 deputados, e vários senadores. Por que apenas colocar em questão a eleição presidencial? Tem que colocar em xeque toda eleição. É uma forma que o Alexandre de Moraes fez para tentar apontar a contradição do PL, que só aceita as urnas quando interessa. São dois pesos e duas medidas. Quando me interessa, eu não questiono, quando não me interessa, eu questiono.

Essa ação protocolada não se sustenta nem por 30 segundos. Eles apontam que as urnas anteriores 2020 teriam o mesmo log, o mesmo número de registro, mas na verdade as urnas têm diversas formas de registro e é possível individualizar e controlar cada uma delas. Existe o boletim de cada uma das urnas. Mesmo os técnicos, que fizeram esse estudo pretensamente técnico do PL, dizem que em nenhum momento colocaram em questão a totalização de votos. Enfim, o negócio realmente não se sustenta. É basicamente fogo de artifício para animar as bases radicalizadas do bolsonarismo.

A estratégia dessa ação seria a longo prazo?

Eu não sei qual é o objetivo final do Bolsonaro com isso. Acho que, realisticamente, tanto ele quanto o PL sabem que isso não vai mudar o resultado da eleição. Mas como eu disse, o Bolsonaro tem alguns problemas diante de si. Primeiro, ele precisa continuar politicamente relevante. Acho que esse é um grande desejo dele. Ele também tem de se tornar politicamente relevante não apenas pela sua agenda, mas porque ele está numa posição política vulnerável. Existem 58 processos esperando o dia 1° de janeiro, quando o presidente perderá o seu foro por prerrogativa de função. Para responder a todas essas acusações de crimes, ele precisa também de força política. Manter uma base fiel, uma base radicalizada, uma base que é capaz de botar fogo no país, para ele interessa bastante. O médio prazo do Bolsonaro é esse. Claro que se ele conseguir continuar sendo uma figura relevante, ele pode tentar pautar a política brasileira nos próximos quatro anos, durante o governo Lula e, enfim, tentar um retorno ou o apoio de alguém, em 2026.

Essa ação pode alimentar e aumentar o volume das manifestações nas ruas contra o resultado da eleição?

É difícil saber, mas eu acho que as manifestações não tendem a aumentar de volume. A ação do PL é apenas um pequeno elemento dando base para essas manifestações. Existe uma série de empresários, isso já tem sido demonstrado, principalmente do Mato Grosso, que tem financiado e tem dado dinheiro para manter as pessoas na rua. Eu estudo movimentos de protesto há mais de cinco anos e, em nenhum lugar do mundo, ninguém fica na rua indefinidamente, sem condições materiais para isso. Existe uma certa fadiga, um cansaço, as pessoas se desmobilizam. Então, para manter a mobilização, é preciso de dinheiro e não apenas o discurso, que é o que o PL tenta fazer agora.

O que o TSE tem tentado fazer, na figura do Alexandre de Moraes, é também ir atrás dos financiadores dessas manifestações. Agora, o Brasil estreia nesta quinta-feira (24) na Copa do Mundo, daqui a pouco tem final de ano, Natal, Ano Novo, e estes são também elementos que tendem a tirar a atenção das pessoas da política e jogar para outros setores. Eu não apostaria em uma continuidade, num ganho de volume das manifestações.

A imprensa francesa continua comparando o Bolsonaro ao ex-presidente Trump. Essa comparação continua pertinente?

Acho que é bastante pertinente porque o Donald Trump também não aceitou os resultados da eleição. Obviamente não houve fraude na eleição do Biden, como não houve fraude na rejeição do Lula. Só que o Trump utilizou todas as complexidades do sistema eleitoral americano, o fato de que demora se muito tempo para apurar as urnas, para colocar ainda mais em dúvida (o resultado) e, sobretudo, tentou melar a diplomação do Biden no famoso 6 de janeiro.

O que o Bolsonaro, que dizia já em 2018 que seria o “Trump dos trópicos”, quer fazer é sem dúvida estar em contato frequente com assessores e pessoas próximas ao Trump, como o Steve Bannon entre outros. O objetivo deles é aprender e tentar replicar, claro com as características brasileiras, o que acontece nos Estados Unidos, tentando, obviamente, serem mais bem sucedidos. Sim, eles vão tentar tumultuar esse período de transição. Não tem dado muito certo. Acho que o governo de transição tem ignorado essas ações de maneira geral e mesmo a classe política, a mídia, já viraram essa página, achando que é uma coisa um pouco folclórica, apesar de preocupante, mas folclórica, esses grupos extremistas bolsonaristas que ainda se recusam a aceitar os resultados, aceitar a derrota.

O dia da posse do presidente eleito Lula é preocupante?

Haverá, sem dúvida, uma preocupação de segurança. Acho que pela primeira vez no Brasil nós temos uma posse num momento em que a política, enfim, o ambiente político está mais conflagrado. Haverá uma preocupação com segurança, mas eu espero que as autoridades brasileiras sejam capazes de fazer um processo mais ordeiro, como foi em 2018 quando Bolsonaro, uma figura absolutamente controversa, ganhou. Espero que a cerimônia de posse seja a possibilidade de uma festa para aqueles que venceram a eleição, que as coisas transcorram de uma forma serena. Mas de fato é uma preocupação porque o bolsonarismo, pela primeira vez, adicionou um elemento de violência muito grande na política brasileira que não havia antes. Pelo menos não se expressava dessa forma.

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