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Vinte anos depois de conquistar a presidência, PT se tornou mais dependente de Lula

O Brasil terá mais uma campanha política polarizada em 2022, vinte anos após a primeira eleição do petista Luiz Inácio Lula da Silva à presidência do país. As pesquisas de intenção de voto têm apontado, em todos os cenários, que Lula e o presidente de extrema direita Jair Bolsonaro lideram a corrida. Dois cientistas políticos ouvidos pela RFI fazem uma análise retrospectiva das transformações ocorridas no país nessas duas décadas. 

Palácio presidencial do Planalto em Brasília.
Palácio presidencial do Planalto em Brasília. Reuters
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Patrice Martin, Florian Riva e Adriana Moysés

A historiadora francesa Camille Goirand, professora de Ciências Políticas no Instituto de Altos Estudos sobre a América Latina (Iheal), em Paris, desenvolve há vários anos estudos sobre o comportamento político dos trabalhadores no Brasil, desde a época dos protestos para combater a ditadura. Em suas pesquisas de campo, ela observou o ativismo dos trabalhadores por maior participação política e conquistas sociais.

Nos últimos anos, Goirand acompanhou a politização da Justiça brasileira, a mobilização da direita e a dinâmica autoritária que retornou ao centro do sistema político, após a eleição de Jair Bolsonaro. Na perspectiva das eleições presidenciais de 2022, a francesa lança um alerta contra o perigo do revisionismo que é feito pelas direitas para, segundo ela, "glorificar um período que foi marcado por violações de direitos humanos". 

Diante das reviravoltas ocorridas no cenário brasileiro, Marco Aurélio Nogueira, professor aposentado de Teoria Política da Unesp e ex-diretor do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da mesma universidade, constata que "há quase um deserto de ideias políticas" no Brasil. "Nem os partidos liberais, de centro ou social-democratas têm propostas inovadoras, um projeto para o país", diz. Ele só é um pouco mais condescendente com a Rede, de Marina Silva, que coloca a questão ambiental no centro da ação social e política.  

RFI – Qual foi a mudança mais significativa que ocorreu no cenário político brasileiro nesses 20 anos, após a primeira eleição de Lula na presidência? 

Marco Aurélio Nogueira – O Brasil se transformou muito, tanto para o bem quanto para o mal nesse período. Tivemos três governos inteiros do Partido dos Trabalhadores, um impeachment da presidente do PT [Dilma Rousseff] e uma fase que se seguiu de desorganização quase que geral da vida política brasileira. O foco principal do governo atual, que vem de 2018, tem sido a desorganização. É um governo de direita, com algumas obsessões muito particulares. Por exemplo, esta que coincide com a pandemia de Covid-19 – a negação da ciência, da racionalidade.

É um péssimo governo do ponto de vista da formação de um ministério, de assessores. São quadros muito medíocres que estão à frente do Estado brasileiro e tudo isso serviu, digamos assim, para que se pudesse pôr em movimento uma operação de demolição institucional. Os efeitos dessa operação chegaram à vida política, não tanto pela iniciativa do governo, mas pela dificuldade da classe política brasileira, dos partidos e suas instituições conexas de responder a esse processo.

Hoje, não há partidos bem resolvidos no Brasil, com personalidade própria, com um programa articulado, com uma narrativa suficientemente clara e preocupação pedagógica de esclarecer o eleitor. Os partidos sequer conseguem controlar as suas bancadas, os seus parlamentares. Isso afeta até o PT, que é o principal partido brasileiro. 

Camille Goirand – Os últimos 20 anos foram ricos em eventos políticos e acontecimentos que foram vividos com dificuldade por uma parte da população brasileira. Por isso, quando olhamos para essa trajetória, não a vemos da mesma maneira que vivenciamos a primeira eleição de Lula, em 2002. O Brasil enfrentou a destituição abusiva de Dilma Rousseff, que sucedeu ao presidente Lula a partir de 2010. Hoje, todo mundo sabe que o objetivo 'das direitas' era tomar o poder em 2016 sem passar por uma eleição.

Depois, veio a disputa eleitoral que deu a vitória a Jair Bolsonaro. Lula foi impedido de ser candidato e ficou preso durante quase dois anos sob falsas alegações de corrupção. As acusações contra ele só foram anuladas recentemente. Por isso, eu acho que existe no Brasil, atualmente, uma certa amargura entre os democratas, não só entre os simpatizantes de Lula, mas até entre pessoas que não são partidárias do PT. Ao olharmos para o passado – e pensarmos naquela ideia de que em 2002 a democracia estava sendo consolidada –, pesquisadores, observadores e jornalistas se dão conta, hoje, que talvez tenha havido muito otimismo. 

RFI – Quais foram as transformações notáveis no Partido dos Trabalhadores antes e depois da conquista da presidência?

Camille Goirand – A eleição de 2002 foi um momento especial para o PT. A legenda tinha sido criada em 1980, quando os militares ainda estavam no poder. Na época, pequenos partidos clandestinos de oposição, diversos movimentos sociais e sindicais e movimentos nascidos na Igreja Católica progressista se juntaram contra a ditadura. Progressivamente, o partido se transformou e, em 2002, Lula se candidatou pela quarta vez à presidência, também um pouco transformado.

A vitória representou uma espécie de momento de consagração. A candidatura de Lula trazia uma esperança de mudança social e política. Quando o partido chegou ao poder, em 2002, ele já estava diferente: muitos militantes tinham se profissionalizado e carregavam uma experiência de governo em grandes capitais. Em 2001, haviam vencido a prefeitura de Recife e, antes disso, conquistado vitórias em São Paulo nos anos 1980. Era um partido que tinha mudado, que havia sido criado durante o período da Guerra Fria, mas que não tinha mais, em 2002, um discurso marxista revolucionário radical – posição apenas do ponto de vista do discurso, porque o PT nunca foi realmente um partido revolucionário. O Partido dos Trabalhadores que venceu a eleição presidencial tinha mudado de discurso e aprendido a conduzir campanhas eleitorais.

Marco Aurélio Nogueira – O PT promoveu uma mudança de perspectiva no que diz respeito à abordagem da pobreza. Isso é inegável e tem de ser reconhecido até pelos que são adversários do partido. De 2003 até 2010, a face da miséria brasileira mudou, mas para que a gente pudesse ficar satisfeito com isso, essa política teria de ter sido sustentável, teria de ter sido algo mais do que a distribuição de dinheiro para a população. E esse 'mais' não houve, ou houve de forma periférica, muito pouco consistente.

Mesmo com as características de negociação e de articulação, que eram inevitáveis, teria sido possível ao menos fixar alguns parâmetros de reformas estruturais: a reforma política, econômica, da terra, da propriedade. O ciclo petista no governo brasileiro se satisfez em recuperar uma ideia de desenvolvimento muito antiga, que veio da ditadura militar, de desenvolvimentismo de tipo nacionalista. O PT repetiu isso através de algumas opções que se mostraram quase que trágicas para a vida brasileira. O PT piorou no sentido de que não evoluiu programaticamente.

A segunda coisa é que o partido avançou, se movimentou a cada dia mais dependente da figura de Lula. A ala lulista se tornou hegemônica e fez com que a cegueira programática aumentasse. Por outro lado, não tem no Brasil nenhum partido com grandes trunfos programáticos, com ideias novas a respeito do que quer que seja. Esse é um pouco do fracasso da política brasileira.

RFI – A polarização emperra o avanço do país?  

Camille Goirand Em 2002, já existiam sinais do que está acontecendo hoje com a extrema direita. Essa nostalgia do período militar em diferentes categorias da população se traduz em revisionismo, em todo um processo de revisão que é feito 'pelas direitas' e a extrema direita para glorificar este período militar, que foi obviamente muito duro, marcado por violações de direitos humanos.

O Brasil de hoje tem um sistema político muito polarizado, em que o governo não é diretamente responsável pelas violações, particularmente da liberdade de expressão, mas ativistas que o apoiam assediam os democratas, aqueles que se opõem ao atual governo no debate público, o que produz o mesmo resultado.

Marco Aurélio Nogueira – Lá atrás, em 2002, qual era a polarização? PT contra PSDB, duas versões da social-democracia brasileira. Vinte anos depois, a polarização é do PT com a extrema direita, o que inevitavelmente faz com que o nível do debate caia muito. O PSDB, que durante muito tempo fez um contraponto ao PT, virou fumaça, um nada. Já o PT, de 2002 até hoje, nem no período em que esteve no governo elaborou uma ideia de Brasil do futuro. 

RFI – A campanha de Lula em 2022 saberá apresentar um projeto novo para o Brasil? 

Marco Aurélio Nogueira Desde que Lula saiu da prisão e se afirmou como candidato, nenhuma ideia nova foi apresentada. A gente pode dizer que ainda não começou o período eleitoral, e até março, abril, talvez será apresentado um programa de governo, um plano que traga novidades. Mas se a gente levar em conta o que foi esse período de 20 anos, a minha resposta seria que nós vamos ficar frustrados, porque não vai aparecer, a não ser que a campanha Lula se abra de maneira muito expressiva para setores não petistas que possam ajudar a formular esse programa. Eu não acredito que venham coisas muito novas.

Eu acho que o feijão vai ser cozinhado do mesmo jeito, com o mesmo tempero, e vai ser servido do mesmo jeito pela generosidade comunicativa do Lula. Acho que é isso o que vamos ter daqui para frente neste ano. Agora, mesmo que seja assim, nós estaremos em uma situação melhor do que estamos hoje. Mesmo que o Lula faça o mesmo governo de 2002, sem correções – o que será uma temeridade, porque ele vai meter os pés pelas mãos se não corrigir alguma coisa –, nós estaremos numa situação melhor do que com esse governo atual, que é um governo liquidacionista, de destruição nacional. 

RFI – O Brasil é afetado por novas formas de populismo, como insistem em apontar alguns comentaristas na França? 

Camille Goirand Eu não usaria a palavra populismo no cenário político brasileiro porque acho que é um termo muito usado em ataques políticos, em debates, e que tende a criticar movimentos que são fundamentalmente diferentes. O que pode ser dito sobre o populismo é que existem líderes carismáticos.

No caso do Brasil, podemos dizer que, cada um do seu jeito, Bolsonaro e Lula são personagens carismáticos que sabem falar em comícios e na mídia. Mas existe uma oposição radical entre uma extrema direita que viola os direitos humanos e as liberdades e o presidente Lula, que se mostrou um democrata. Lula demonstrou que governa de acordo com os princípios democráticos. 

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