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Macron assume “responsabilidade” em genocídio: como França e Ruanda pacificaram a relação bilateral

A visita do presidente francês, Emmanuel Macron, a Ruanda nesta quinta-feira (27) marca uma nova etapa da “normalização” das relações entre Paris e Kigali, na avaliação do Palácio do Eliseu. O papel exercido pelos franceses no genocídio perpetrado contra a minoria tutsi em 1994 até hoje envenena o diálogo entre os dois países – uma ferida que Macron espera cicatrizar, ao reconhecer as “responsabilidades" de seu país nos crimes e pretender o “dom do perdão” dos familiares das vítimas.

Presidente de Ruanda, Paul Kagame, recebe o francês  Emmanuel Macron em Kigali (27/05/2021).
Presidente de Ruanda, Paul Kagame, recebe o francês Emmanuel Macron em Kigali (27/05/2021). REUTERS - JEAN BIZIMANA
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A reaproximação se iniciou de fato com Nicolas Sarkozy, o único presidente francês antes do atual a visitar o país africano após o drama, em 2010. A viagem ocorreu quatro anos depois de o presidente ruandês Paul Kagame romper as relações diplomáticas com Paris, em protesto contra uma investigação feita na França do atentado contra o avião do presidente Juvenal Habyarimana, em 1994, na qual diversos de seus aliados foram incriminados.

Sarkozy, sucessor de Jacques Chirac em 2007, quis virar esta página e, na visita, reconheceu “erros políticos” e “uma forma de cegueira da França” em Ruanda. Na sequência, Kagame foi recebido na capital francesa – mas a reconciliação durou poucos meses.

Em 2014, na véspera do aniversário dos 20 anos da tragédia, o presidente ruandês – que liderou a rebelião tutsi que pôs fim ao genocídio – voltou a acusar Paris, então governada pelo socialista François Hollande. Em uma entrevista, Kagame apontou “o papel direto da França na preparação do genocídio” e a sua “participação” na “execução" dos crimes. O tom desagradou o governo francês, que cancelou a participação da ministra da Justiça da época, Christiane Taubira, nos eventos previstos no país africano para relembrar a data.

Emmanuel Macron inicia nova aproximação

Ao chegar no Palácio do Eliseu, em 2012, o atual presidente francês relança a aproximação entre os dois países, a passos discretos. Depois de um primeiro encontro em setembro de 2017, ele convida o líder ruandês para um evento em Paris sobre novas tecnologias. Na ocasião, tenta um diálogo sobre assuntos diversos, como meio ambiente, igualdade de gênero e outros temas.

Em paralelo, os franceses apoiam iniciativas de Kagame enquanto presidente em exercício da União Africana e defendem a candidatura da ministra ruandesa das Relações Exteriores, Louise Mushikiwabo, para a presidência da Organização Internacional da Francofonia.

Seis meses depois, Macron anuncia um reforço policial e judiciário para levar aos tribunais franceses suspeitos ruandeses de participarem do genocídio. Passo ainda mais marcante, o presidente também oficializa a criação de uma comissão de historiadores encarregados de esclarecer o papel da França na matança dos tutsis.

A comissão, chamada de Duclert, concluiu, dois anos depois, que Paris teve duras responsabilidades no genocídio. O relatório destaca sobretudo a omissão do ex-presidente François Mitterrand e de seus colaboradores mais próximos, que ignoraram as informações e advertências sobre os crimes em larga escala que poderiam ser cometidos. O documento constata que o governo francês também falhou em não parar o massacre. 

Nesta época, a Agência Francesa de Desenvolvimento volta a atuar no país africano, sinal de uma normalização à vista entre os dois países. Durante uma visita a Paris na semana passada, Kagame afirmou que o relatório Duclert abriu o caminho para que França e Ruanda retomem uma boa relação. "Posso viver com" as conclusões do relatório, disse Kagame em entrevista aos veículos France 24 e RFI. "Podemos deixar o resto para trás e seguir em frente", pontuou.

Discurso histórico recebe elogios e críticas

O discurso de Macron nesta quinta-feira representa um novo marco nessa trajetória. "Hoje, com humildade e respeito, venho reconhecer nossas responsabilidades", disse o francês em um discurso muito aguardado no memorial Gisozi, em Kigali, onde estão enterrados os corpos de 250 mil vítimas do genocídio no país, que deixou 800 mil mortos da etnia tutsi.

"Essa trajetória de reconhecimento das nossas dívidas cria a esperança de deixar esse período obscuro para trás e caminhar novamente juntos. Neste caminho, apenas aqueles que atravessaram esse período obscuro possam, talvez, nos dar o dom do perdão", ressaltou Macron. "Reconhecer este passado é também, e acima de tudo, continuar o trabalho da Justiça. Comprometemo-nos a garantir que nenhum suspeito de crimes de genocídio possa escapar do trabalho dos juízes", acrescentou – frisando, no entanto, que a França "não foi cúmplice" do genocídio.

“Foi um lindo discurso, para nós. Ele ter reconhecido a responsabilidade da França no genocídio é muito positivo”, avalia Egide Nkuranga, presidente interino da associação de sobreviventes Ibuka, à RFI. “Ele não pediu direta e oficialmente perdão, como nós esperávamos, em nome da França e do povo francês, talvez por razões políticas. Mas ele mencionou isso, de alguma forma, e é algo que nós recebemos bem”, complementou.

“São palavras fortes, muito justas, que têm a dimensão política, mas também humana e histórica”, complementa Assumpta Mugiranesa, da organização Iriba, que trabalha pela recuperação da memória do genocídio. “Eu concordo com Macron quando ele diz que o perdão é dado por aqueles que não estão mais entre nós. Quem seria eu para perdoar no lugar dos meus familiares? Trabalhemos para reconciliar”, ressaltou.

Já Alain Gauthier, copresidente e fundador do Coletivo de Partes Civis por Ruanda, ficou insatisfeito com as palavras do francês. "Estou com raiva, porque nós escutamos um discurso de compaixão em relação às vítimas e aos sobreviventes, mas esperávamos um pedido de desculpas da França, como outros países puderam fazer. Estou terrivelmente decepcionado”, lamentou. "Ele não foi além do que o relatório Duclert já havia reconhecido. Precisava vir ao memorial e, diante de 150 mil corpos de vítimas, falar isso? Isso me parece desonrar, de certa forma, as vítimas.”

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