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Reportagem

Com dificuldade para atrair novos soldados, Guarda Suíça do Vaticano faz campanha de recrutamento

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Todos os anos, no mês de maio, novos recrutas integram a Guarda suíça Pontifícia, em um ritual que se repete há séculos. Mas de uns tempos para cá, a corporação que protege o Vaticano e o Papa têm dificuldades para encontrar novos homens e manter a tradição.

O exército do menor país do mundo é pacífico. Em seu arsenal, a Guarda Suíça conserva uma interessante coleção de antigas armaduras, piques, lanças e espingardas.
O exército do menor país do mundo é pacífico. Em seu arsenal, a Guarda Suíça conserva uma interessante coleção de antigas armaduras, piques, lanças e espingardas. REUTERS - REMO CASILLI
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Gina Marques, correspondente da RFI na Itália

O exército do menor país do mundo se prepara diariamente. No quartel da Guarda Suíça Pontifícia, manter a tradição é uma ordem. Tudo tem que ser organizado nos mínimos detalhes: os uniformes são feitos sob medida, ordenados com o nome de cada militar, e os soldados lustram cuidadosamente suas armaduras.

“Um colega ajuda o outro a vestir a couraça. A primeira vez é mais difícil, mas é preciso vestir peça por peça,” conta o recruta Alex. A vestimenta de metal, com o capacete, chega a pesar 15 quilos, colocados sobre o uniforme colorido usado em muitas ocasiões.

A disciplina também é rígida. Os soldados se exercitam pelo menos quatro horas por dia. O comandante dá ordens em alemão, mas os suíços também falam francês, italiano e romanche. 

O recruta Danilo diz que o treinamento não é complicado, mas já sabe que no verão romano “o calor vai ser difícil”.

Uma das missões da Guarda Suíça Pontifícia é proteger o papa.
Uma das missões da Guarda Suíça Pontifícia é proteger o papa. REUTERS - GUGLIELMO MANGIAPANE

No pátio quartel da Guarda Suíça, 23 recrutas treinavam para prestar o juramento ao sumo pontífice. Estes jovens decidiram dedicar pelo menos dois anos e dois meses de suas vidas à proteção do papa e formar um exército de 135 homens. 

A cerimônia de juramento ocorre todos os anos no dia 6 de maio, um ritual que se repete há quase 5 séculos. No Pátio de São Dâmaso, no Vaticano, avançam um a um, seguindo uma coreografia precisa, para chegar à bandeira e declarar sua lealdade ao papa. Com a mão esquerda no estandarte, três dedos da mão direita erguidos para o céu, os jovens alabardeiros juram “com coragem e fidelidade” proteger o pontífice e seus legítimos sucessores, mesmo que isso signifique perder a vida. Assim, mais uma vez neste começo de maio, em 23 ocasiões e em quatro línguas diferentes – francês, alemão, italiano ou romanche – o som deste compromisso ecoou no elegante átrio do Palácio Apostólico.

A data do juramento comemora os 147 guardas suíços que morreram em 6 de maio de 1527 em Roma para salvar o papa Clemente VII das tropas invasoras de 20 mil homens comandadas pelo imperador Carlos V. A milícia suíça a serviço do Estado Pontifício contava com apenas 189 soldados e só 42 sobreviveram. A batalha é conhecida como o Saque de Roma.

Quase meio milênio depois, o pequeno exército fundado pelo papa Júlio II em 1506 ainda se renova. Na cerimônia de juramento deste ano houve uma novidade inesperada. Entre a apresentação de cada recruta, as cerca de 2.000 pessoas que compareceram ao evento se permitiram aplaudir calorosamente. “Uma quebra no cerimonial que pode se tornar uma tradição” comentou um guarda suíço sorrindo. 

A maioria dos convidados, familiares e amigos dos soldados, veio de cidadezinhas do interior de diversos cantões da Suíça. As 5 da tarde, com temperatura amena típica da primavera romana, muitas moças usavam vestidos coloridos, saias justas ou rodadas ou até calça jeans. A vestimenta dos homens também era variada, calça social ou jeans, alguns usavam ternos, outros um casaco de malha, camisa lisa ou xadrez, com ou sem gravata. A espontânea elegância das roupas respeitava as regras do Vaticano: o corpo tem que estar mais coberto do que descoberto. 

Antes de começar o evento, a banda de Aarau – cidade de 15 mil habitantes no norte da Suíça, capital do Cantão de Argóvia – recebeu os convidados ao som de música pop. O repertório variava de “Mamma Maria”, canção de 1982 do grupo italiano Ricchi e Poveri, à “Don't Stop Me Now” dos britânicos Queen, passando por “Can't Help Falling in Love” de Elvis Presley, em uma tentativa de modernizar a cerimônia.

A inovação dentro da tradição faz parte dos elemento de persuasão para convencer jovens suíços a se alistarem no serviço militar do papa. 

Critérios de seleção

Para ser um Guarda Suíço é necessário respeitar alguns critérios: ter feito o serviço militar na Suíça; diploma profissional ou ensino médio concluído; altura mínima de 1,74 m; idade entre 19 e 30 anos; além de ser católico e solteiro. Nesse serviço não são admitidas mulheres.

“O quartel tem poucos alojamentos. Além disso, é uma decisão que compete ao Santo Padre”, comentou o porta-voz da Guarda Suíça, Eliah Cinotti, para explicar o recrutamente exclusivamente masculino.

Atualmente os alojamentos são compostos por dormitórios, onde convivem dez guardas. Os quartos são úmidos e sem ar-condicionado. Entre os recrutas, o quartel ganhou o apelido de “Califórnia” devido ao calor intenso no verão e frio no inverno. Os banheiros são compartilhados e o espaço começa a ser insuficiente, já que o papa decidiu em 2015 aumentar o número de guardas de 110 para 135, sem que nenhuma ampliação importante fosse realizada.

Uma reforma do quartel, e será financiada pelo banqueiro suíço Jean-Pierre Roth, chefe da Fundação para a Restauração do Quartel da Guarda Suíça Pontifícia. Segundo a Swissinfo, para realizar as obras de restruturação a fundação pretende arrecadar 50 milhões de francos, cerca de R$ 275 milhões.

Medidas de incentivo

Mas os critérios restritos para admissão e as questões de infraestrutura não são os únicos obstáculos para os novos recrutas. Um dos fatores que desestimulam os jovens a se alistar é remuneração. Os soldados do papa recebem um salário mínimo mensal de € 1.500, cerca de R$ 8 mil, mais hospedagem e alimentação, pagos pelo Vaticano com o apoio financeiro de fundações doadoras. Porém, se na Itália este é um salário médio, no país dos grandes bancos o valor é relativamente baixo.

O recrutamento sofre também as consequências de gerações marcadas por baixos índices de natalidade. O nascimento de crianças na Suíça vem diminuindo significativamente nas últimas duas décadas. 

Diante desse contexto, para promover o recrutamento, o exército do papa partiu para a ofensiva. Além de campanhas nas redes sociais, a Guarda Suíça Pontifícia nos últimos anos tem participado da feira “Your challenge” em Martigny, no cantão do Valais. Nesta feira, ex-guardas, homens de patente militar em uniformes de honra conversam com o público, esperando encorajar vocações.

Uma série de medidas também vem sendo tomadas para tornar a função mais atraente. O papa Francisco permitiu aos soldados se casar após cinco anos de serviço, independentemente de sua posição militar. No passado, apenas oficiais e guardas com mais tempo de serviço tinham esse direito. 

“Quando os militares se casam, podem morar em um apartamento para servidores do Vaticano. Neste momento, não há mais apartamentos vagos dentro da Cidade do Vaticano, portanto os militares casados vivem com suas famílias em propriedades da Santa Sé nos arredores,” explicou Cinotti.

A Fundação da Guarda Suíça Pontifícia cobre as mensalidades escolares dos filhos dos soldados na Escola Suíça de Roma. Além disso, facilita a reintegração no mercado de trabalho na Suíça e na Itália. No futuro, também pagará metade das contribuições voluntárias dos guardas para a pensão de velhice (Asseguração de Sobrevivência de Velhice - AVS).

“A Guarda Suíça propõe vários tipos de formação durante o serviço militar no Vaticano. Quando terminam o serviço, mais de ¾ dos soldados entram na polícia ou no exército Suíço, ¼ retorna ao trabalho anterior no seu país", detalha Cinotti. "E a cada ano um soldado decide abraçar a vocação religiosa para ser um padre”, revelou o porta-voz.  

Mesmo com os incentivos, não é fácil encontrar jovens qualificados e dispostos a servir o papa por vários anos. Se o contigente aumentou para 135 homens, o número de novos recrutas a cada ano vem diminuindo.

Os uniformes

Os uniformes coloridos foram desenhados em 1914 pelo comandante Jules Repond. Ele se inspirou no estilo das fardas do Renascimento. As inconfundíveis cores azul, vermelho e amarelo são características da família do papa Clemente VII, os Medici. 

Particularmente admirado pelos turistas, o uniforme extravagante é resultado de um trabalho minucioso, costurado sob medida na alfaiataria do Vaticano. Cerca de trinta horas de trabalho são necessárias para montar as 156 peças de tecido que o compõem.

O uniforme da Guarda Suíça é particularmente admirado pelos turistas.
O uniforme da Guarda Suíça é particularmente admirado pelos turistas. REUTERS/Stefano Rellandini

Em ocasiões especiais, acessórios são combinados com o uniforme, de forma a deixá-lo ainda mais solene. Por exemplo, para o uniforme de gala usado na presença do Papa, além da farda ordinária, há também uma vistosa gorjeira, luvas brancas e um capacete de metal com pena de avestruz, cuja cor depende da patente do soldado.

Os guardas suíços também vestem outros uniformes. Um deles é mais discreto, de cor azul com camisa com mangas bufantes e calças também com pernas bufantes, além da gola branca. Os militares com este tipo de uniforme controlam a Porta Sant'Ana, uma das entradas da Cidade do Vaticano, a leste da Praça de São Pedro.

Mas nem sempre os militares do Vaticano trabalham fardados. Eles acompanham o papa nas suas viagens sem o uniforme colorido. 

As armas 

Proteger o Papa Francisco não é uma tarefa fácil no meio da multidão. Para reforçar a proteção do pontífice, o exército da Guarda Suíça trabalha junto aos policiais da Gendarmeria do Vaticano, além de Carabinieri e Polícia italiana.

O exército do menor país do mundo é pacífico. Mas em seu arsenal, a Guarda Suíça conserva uma coleção de antigas armaduras, piques, lanças e espingardas.

As duas armas brancas dos guardas combinam com os antigos uniformes: a espada e a alabarda, idênticas às dos mercenários suíços do século XVI.

Mas como qualquer exército moderno, a Guarda Suíça Pontifícia também possui armas de fogo suficientes para garantir sua missão: proteger o papa e vigiar as fronteiras do Vaticano. 

Todo recruta diariamente faz exercícios de tiro para aprender a usá-las, mas em serviço apenas oficiais e suboficiais as carregam consigo. 

“A principal arma da Guarda Suíça é a palavra, conversamos com as pessoas. Porém, os militares também têm pistolas, armas longas, armas de eletrochoque e spray de pimenta”, explicou o porta-voz.

Em novembro de 2018 uma mulher italiana experimentou na própria pele, ou melhor, nos próprios olhos, a eficiência do spray de pimenta usado pela Guarda Suíça. Segundo a imprensa italiana, a senhora, acompanhada pelo cachorrinho na coleira, tentou forçar a passagem na Porta Sant'Ana para entrar na Cidade do Vaticano. O militar pontifício impediu a sua entrada, mas ela continuou a insistir, falando alto. Foi então que guarda suíço, sem excesso de zelo, lançou o spray de pimenta. Resultado: a mulher gritou ainda mais forte e o cachorrinho latiu o máximo que podia.

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