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Reportagem

Guerra na Ucrânia, um ano depois: mulheres ucranianas contam suas lutas dentro e fora do país

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Um ano depois da invasão russa, três ucranianas contam como a guerra mudou suas vidas. A deputada Kira Rudik relata como a sua atuação no Parlamento e no exterior se transformou; a jornalista Olena Galaguza chegou a se mudar para a Suécia com a mãe e a filha, mas não aguentou as saudades e voltou para a Ucrânia, e a comunicadora Alexandra Tsyliya foi para Luxemburgo com duas filhas pequenas e hoje trabalha ajudando refugiados na Europa. Apesar das trajetórias distintas, elas têm em comum a esperança de ver seu país livre em breve.

Alexandra Tsyliya, ucraniana que está morando em Luxemburgo com as duas filhas pequenas. Na foto, ela comemora o Dia Nacional da Ucrânia. Arquivo pessoal.
Alexandra Tsyliya, ucraniana que está morando em Luxemburgo com as duas filhas pequenas. Na foto, ela comemora o Dia Nacional da Ucrânia. Arquivo pessoal. © Arquivo Pessoal
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Paloma Varón, da RFI

Kira Rudik, de 37 anos, é deputada no Parlamento ucraniano. Líder do partido Golos, o mesmo do presidente Volodymyr Zelensky, ela conta que, no último ano, dedicou a sua vida e o seu mandato a ajudar seu país a vencer a guerra.

"Minha vida, agora, está muito diferente. Eu ainda atuo como deputada, embora meu trabalho seja mais no nível de relações internacionais. No ano passado, eu fui a 34 países para defender meu país e para pedir ajuda militar e financeira", relata Kira Rudik. "Agora estou em Kiev, me preparando para o aniversário de um ano da invasão russa. Os ataques de mísseis não acabaram. Hoje eu estava numa praça, dando uma entrevista, e um míssil explodiu a alguns quilômetros de nós. Isso é uma coisa com a qual você nunca se acostuma: saber que a sua vida pode terminar a qualquer minuto", conta.

Kira foi entrevistada pela RFI em março de 2022. Na época, ela estava fazendo um treinamento para lutar na guerra, se fosse necessário. Ela chegou a posar para fotos com um fuzil Kalashnikov, do qual ela não se separava, caso fosse surpreendida por um ataque.

"Os russos saíram de Kiev e eu não tive que usar minhas armas, embora hoje em dia eu saiba muito bem como manipulá-las e isso é algo que ficará em mim por um bom tempo. Quando parte da minha equipe foi para o front de guerra, e eles ainda estão lá, lutando, eles disseram: 'Nós vamos lutar para que você nunca precise usar suas armas em Kiev'. E até agora eles mantiveram a promessa", disse, acrescentando que o Parlamento ucraniano continua se reunindo a cada duas semanas e que agora todos os partidos estão unidos por um interesse comum: vencer a guerra.

De volta para a Ucrânia

A jornalista Olena Galaguza, de 38 anos, foi entrevistada pela reportagem da RFI pela primeira vez também no ano passado, em Estocolmo, na Suécia, para onde ela havia ido como refugiada, junto com a sua mãe e a sua filha de seis anos.

Apesar de ter encontrado um trabalho e um lugar para morar em Estocolmo, na casa de uma família sueco-brasileira, Olena voltou para Zhytomyr, sua cidade natal, a 120 quilômetros de Kiev, no mês de agosto. Ela arrumou um emprego no Museu Espacial (Sergiy Korolyov), que fica em sua cidade, e trouxe a mãe e a filha de volta em outubro. 

"Eu estou bem. Quer dizer, como posso dizer que estou bem? Agora temos blecaute na minha cidade, temos sirenes", relata Olena. "Hoje, minha filha não pôde ir à escola. As sirenes aéreas começaram às 8h da manhã e ela teve de ficar em casa. Quando as crianças já estão na escola e as sirenes soam, elas correm para os abrigos na escola mesmo", explica a ucraniana.

Apesar de ter voltado para a Ucrânia, Olena lembra com carinho da estadia na casa da escritora brasileira Ilana Eleá, que a acolheu com sua família em Estocolmo. "Eu sou muito grata a Ilana e sua família, porque, quando eles me perguntaram o que a gente precisava aqui, eu não queria incomodá-los. Voltar para cá foi minha decisão consciente. E a principal razão é porque eu queria voltar para casa. Minha identidade é ucraniana e eu queria ser útil aqui. A Ucrânia não pode ser um país sem os ucranianos. Eu estava com muitas saudades", explica.

Olena conta que um dos principais desafios em tempos de guerra é manter a saúde mental: "Quando eu estava em Estocolmo, ia para a ginástica quase todos os dias, para preservar a minha saúde mental. Só assim eu conseguia me distrair e me concentrar em outra coisa", relata.

Olena Galaguza em frente a uma escola bombardeada pelos russos na sua cidade, Zhytomor, a 120km de Kiev
Olena Galaguza em frente a uma escola bombardeada pelos russos na sua cidade, Zhytomor, a 120km de Kiev © Arquivo Pessoal

De Lviv a Luxemburgo

Alexandra Tsyliya, de 33 anos, trabalhava numa agência de comunicação e marketing em Kiev quando foi entrevistada pela RFI no ano passado. Ela inicialmente deixou a capita ucraniana com as duas filhas, de três e sete anos, e foi para a região de Lviv, perto da fronteira com a Polônia.

Para poupar as filhas, ela deixou Lviv e foi para uma região montanhosa no Oeste ucraniano, mas, depois de alguns meses, sem oportunidades de trabalho, viu que não dava para ficar no país e privar suas filhas de escola e a mais velha de treinos em ginástica rítmica.  

E foi graças ao esporte que elas se mudaram para Luxemburgo. Inicialmente, ela encontrou um centro de treinamento que aceitou receber a filha mais velha, hoje com oito anos. Em seguida, procurou uma família que as hospedasse e um trabalho, com um visto de “proteção temporária”, que precisa ser renovado a cada ano.

"Nós estávamos entre Lviv e os Cárpatos, então tive que decidir o que fazer, pois minhas filhas estavam na escola online e minha filha mais velha não podia continuar seus treinos de ginástica rítmica. Então eu comecei a investigar as opções e a traçar um plano", conta. 

Alexandra diz que deixar o país foi uma decisão muito difícil. Hoje ela está construindo uma vida nova em Luxemburgo, enquanto sonha com o dia em que poderá voltar para a Ucrânia.

Angústia de estar longe

Olena fala que, apesar do perigo, voltar foi, para ela, uma decisão acertada.

"Quando eu estava na Suécia, estava mais ansiosa e infeliz. Aqui, me sinto calma. Eu não sei bem por que, pois a guerra está aqui, não estava em Estocolmo, mas eu me sinto mais calma e confortável aqui. Zhytomyr não está no centro da guerra, mas aqui temos mísseis. Lembro que, no dia em que eu voltei, vi um míssil e pensei : 'Olena, por que você deixou a Europa?'. Mas eu estava ok, não estava estressada", disse.

Na mesma linha, Kira Rudik diz que, apesar de ter saído tantas vezes da Ucrânia a trabalho, pretende agora passar mais tempo no seu país.

A deputada ucraniana Kira Rudik.
A deputada ucraniana Kira Rudik. © Arquivo pessoal

"Eu viajei tanto desde que começou a guerra que posso dizer honestamente: quando estou fora da Ucrânia e sei que houve explosões e novos ataques, me sinto muito pior e mais preocupada do que quando estou em Kiev. E esta preocupação constante vai me matando por dentro. Então agora estou em Kiev e vou ficar aqui por um tempo; eu me sinto mais no controle quando estou aqui", afirma.

Crimes de guerra

Desde que voltou à Ucrânia, Olena está trabalhando em um projeto que visa recolher testemunhos das vítimas da guerra para poder denunciar a Federação russa no Tribunal Penal Internacional por crimes de guerra. 

"Eu falei para o meu namorado, que é advogado, para coletarmos depoimentos de vítimas de agressões russas para que ele, em parceria com um amigo advogado de San Marino, denunciasse a Rússia ao Tribunal Penal Internacional. Isso é parte do meu trabalho voluntário", conta.

A guerra na Ucrânia ficará na memória coletiva pelas imagens duras: corpos de civis com as mãos amarradas às costas nas ruas de Bucha após a retirada russa, um bicho de pelúcia repleto de sangue na estação de Kramatorsk, uma maternidade bombardeada em Mariupol, entre outras.

Quase 65.000 supostos crimes de guerra foram denunciados, segundo o comissário europeu de Justiça, Didier Reynders.

As tropas russas foram acusadas de execuções, estupros, torturas e sequestros de crianças - mais de 16.000 enviadas para a Rússia ou territórios sob seu controle, segundo Kiev. Em setembro, investigadores da ONU acusaram as forças russas de crimes de guerra "em larga escala".

A Ucrânia foi acusada de cometer crimes de guerra contra prisioneiros russos, mas sem comparação com a quantidade de fatos atribuídos a Moscou.

O Tribunal Penal Internacional abriu em 2 de março de 2022 uma investigação por crimes de guerra e crimes contra a humanidade na Ucrânia.

Refugiados

Alexandra, depois de ter trabalhado por seis meses numa agência de comunicação inglesa, atua em uma organização que ajuda refugiados ucranianos na Europa

"Eu trabalhei num projeto super interessante da Amazon de resposta à guerra na Ucrânia criando vídeos, produzindo Stories, para canais de comunicação internos. Quando acabou o contrato, tive que pensar no que fazer em seguida. Eu não posso me permitir não trabalhar. Então tive a proposta de trabalhar nesta ONG que ajuda ucranianos, a mesma que me ajudou quando cheguei a Luxemburgo. Organizo eventos, escrevo projetos e estratégias para promover a cultura ucraniana, tudo o que sirva para lembrar que a guerra não acabou na Ucrânia", explica. 

De acordo com a ONU, os combates deixaram mais de 5 milhões de deslocados internos e obrigaram quase 8 milhões de pessoas a abandonar a Ucrânia. A Polônia é um dos principais países de recepção, com mais de 1 milhão de pessoas.

Os comandantes da ocupação russa afirmam que pelo menos cinco milhões de ucranianos seguiram para a Rússia. Kiev chama de "retiradas forçadas".

Custo econômico

Kira Rudik, entre tantos projetos, está empenhada em um específico: o de usar o dinheiro dos investidores russos na Europa, que estão sob sanção, para pagar os prejuízos que a invasão russa à Ucrânia tem provocado.

"Eu tenho um projeto principal. No ano passado, no Fórum Econômico de Davos, encontrei Bill Browder, o autor do livro 'Como me tornei o inimigo número 1 de Putin', e ele se ofereceu para apoiar a iniciativa de usar os ativos russos que estão congelados em países europeus e nos Estados Unidos para cobrir as perdas ucranianas nesta guerra. Estamos trabalhando nisso e tendo sucesso: o Canadá aprovou uma lei sobre isso, e estamos tentando o mesmo com o Reino Unido. Cerca de US$ 500 bilhões podem ser confiscados e usados para ajudar o meu país. Membros de parlamentos de diferentes países estão trabalhando conosco neste projeto e, mesmo que algo aconteça comigo, eu acho que eles vão levá-lo até o fim", explica. 

O custo econômico da guerra para a Ucrânia foi enorme: o PIB registrou contração de 35% em 2022, segundo o Banco Mundial.

A Kyiv School of Economics calculou os danos em US$ 138 bilhões e as perdas para a agricultura em mais de US$ 34 bilhões. Mais de 3.000 escolas foram afetadas, segundo o governo ucraniano. A Unesco contabiliza 239 centros culturais atingidos.

Desde setembro, Moscou ataca sistematicamente as infraestruturas de energia. Em dezembro, quase metade das instalações estavam danificadas, o que deixou os ucranianos no escuro e frio.

Esperança

Questionada se ainda é possível ter planos e sonhar na Ucrânia de hoje, Kira disse: "Eu tinha uma vida boa, como uma mulher que trabalhava para o governo no centro da Europa. Eu praticava esportes, encontrava amigos, famílias, fazia planos para o meu partido e para a Ucrânia, planejava férias em maio... e então tudo mudou. Primeiro, eu tinha planos de sobrevivência, e ainda é assim agora: você não planeja mais nada que seja para daqui a mais de uma semana".

Mas, apesar disso, ela não perde a esperança. "Nós estamos rodando com um combustível, que se chama esperança. Então é claro que nós, ucranianos, sonhamos. Eu sonho que haverá paz e que as coisas que me faziam feliz antes da guerra voltem a ter importância. O que aprendemos no ano que passou é: o quão insignificantes são as coisas materiais e o quão importantes são as pessoas".

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