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Reportagem

Reconhecimento da independência do Brasil pela Grã-Bretanha custou caro

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Principal potência econômica e militar do século XIX, a Grã-Bretanha teve papel fundamental para convencer os portugueses a aceitar a independência do Brasil. Mais do que amizade, interesses econômicos e ideológicos determinaram a atuação britânica. Sua participação como aliado neste processo já foi usada até como argumento de política externa para justificar a aproximação estratégica do Reino Unido com o Brasil no século XXI.

Dom João VI e Dom Pedro I, por Jean-Baptiste Debret (Viagem Histórica e Pitoresca ao Brasil).
Dom João VI e Dom Pedro I, por Jean-Baptiste Debret (Viagem Histórica e Pitoresca ao Brasil). © Reprodução
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Vivian Oswald, correspondente da RFI no Reino Unido

No discurso “Grã-Bretanha e América Latina: amigos históricos, parceiros do futuro”, o ex-secretário de Relações Exteriores britânico William Hague destacou a importância do seu país em movimentos de independência na região, sobretudo no que diz respeito à influência britânica nos termos que foram negociados com Portugal para que finalmente reconhecesse a independência brasileira.

Hague falou em 2010, quando o Brasil era cortejado pelas nações desenvolvidas, por se tratar de promissora locomotiva do crescimento econômico internacional, junto com os outros quatro países do recém-criado BRICS, que reunia Rússia, Índia, China e África do Sul. O acrônimo de 2001 inventado pelo economista-chefe do Goldman Sachs Jim O’Neill saiu do papel e ganhava novo status para tratar dos temas globais.

A palestra de Hague foi proferida na Canning House, think tank que recebeu o nome de uma figura-chave no processo da independência do Brasil, o ex-chanceler George Canning. A tal prioridade parece ter se perdido no caminho. Somente um primeiro-ministro britânico esteve em visita oficial ao Brasil, o trabalhista John Major, que, na verdade, foi participar da Rio92. Dois presidentes brasileiros, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, contudo, foram recebidos pelo Reino Unido.

Chancela da Grã-Bretanha

Um dos maiores especialistas estrangeiros em História do Brasil, o professor de Oxford Leslie Bethell, afirmou à RFI que mais do que o reconhecimento de Portugal, o novo governo brasileiro independente queria mesmo a chancela da Grã-Bretanha.

O professor destaca o que escreveu, em julho de 1823, o Marechal Felisberto Caldeira Brant Pontes, futuro Marquês de Barbacena, agente de D. Pedro em Londres, a José Bonifácio de Andrada e Silva, então ministro de Relações Exteriores:

"Com a amizade da Inglaterra nós podemos estalar os dedos e o resto do mundo faz o que a gente quiser... Não será necessário mendigar o reconhecimento de qualquer outra potência".

O ministro Canning tinha interesse no reconhecimento rápido e sabia que a ansiedade brasileira podia render frutos ao Império Britânico. Para ele, a independência já era "fato consumado", porque Portugal não tinha vontade política, nem recursos militares e financeiros para evitá-la.

O fato de o Brasil ter mantido a monarquia também agradava Canning, que considerava importante preservá-la como antídoto ao republicanismo e àquilo que considerava como “os males da democracia universal” no continente americano. Seria elo valioso entre o Velho e o Novo Mundo, segundo Bethell. A independência era ainda oportunidade única para que os britânicos avançassem na campanha contra o tráfico de escravos, abolido na Grã-Bretanha desde 1808.

Mais importante do que isso, eram seus interesses comerciais. Afinal, o Brasil já era seu terceiro maior mercado. E o tratado comercial anglo-português firmado em 1810, com tarifa preferencial para a Inglaterra, expirava em 1825. Sua renovação era fundamental para os britânicos, segundo Lucia Paschoal Guimarães, professora titular sênior da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e membro efetivo do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro.

"Houve uma forte pressão britânica no processo de reconhecimento da independência. Havia interesse muito forte da Inglaterra de manter a posição privilegiada de comércio com o Brasil que vinha dos tratados desde o tempo de D. João VI" , afirma a professora

Àquela altura, contudo, os britânicos não tinham como ignorar seus interesses econômicos e estratégicos em Portugal. Por isso, era preciso que os portugueses saíssem na frente. Já havia negociações em curso mediadas pela Grã-Bretanha e pela Áustria desde setembro de 1823. Mas atrasos poderiam comprometer as frágeis instituições políticas do país e sua precária unidade territorial, além de ameaçar a influência política da Grã-Bretanha.

Brasil pagou caro pelo apoio britânico

No início de 1825, Sir Charles Stuart, embaixador britânico em Paris, partiu para Lisboa com a "missão especial da maior sutileza e importância” de convencer os portugueses. Se não não desse certo, lembra Bethell, seguiria para o Rio de Janeiro, onde negociaria diretamente com os brasileiros um tratado comercial que incluísse a abolição do tráfico de escravos. "A assinatura do tratado constituiria, evidentemente, o reconhecimento pela Grã-Bretanha do império brasileiro independente”, explica o professor.

Em 29 de agosto de 1825, no Rio, depois nada menos do que treze reuniões com a equipe negociadora brasileira, foi assinado um tratado pelo qual D. João reconhecia D. Pedro como Imperador de um Brasil independente. Em troca, o Brasil concordava em pagar uma indenização milionária a Portugal, cerca de dois milhões de libras esterlinas. O tratado foi ratificado por D. Pedro em 30 de agosto e as celebrações, realizadas no dia 7 de setembro, três anos após a declaração da independência do Brasil.

O Brasil também pagou caro pelo apoio da Grã-Bretanha, que reconheceu sua independência no final de 1825. Firmou dois tratados com o país. O primeiro determinava que o comércio escravagista brasileiro se tornaria ilegal três anos após a ratificação. O segundo mantinha tarifa preferencial de 15% para produtos britânicos importados pelo Brasil, sem reciprocidade na mão inversa — um luxo para a Grã-Bretanha.

Além disso, assegurava os direitos de comerciantes britânicos fixados no tratado anglo-português de 1810: desde residir e ter propriedades no Brasil, com suas próprias igrejas e capelas, hospitais e cemitérios, a nomear magistrados especiais, os chamados juízes conservadores, que ficariam responsáveis por todos os casos que envolvessem súditos britânicos.

É o que Bethell destacou como um sistema de justiça paralelo britânico, em uma espécie de "império informal britânico" no Brasil no século XIX. Para os Estados Unidos, à época, o Brasil “se jogava nos braços da Inglaterra, e, em certa medida, transferia a relação colonial de um país para outro”. Bethell considera a avaliação um exagero.

Nascimento da dívida externa brasileira

No Brasil, a reação foi de indignação. A moeda de troca foi considerada um sacrifício excessivo, possivelmente desnecessário, e uma afronta à soberania nacional. 

"É evidente que o império nascente do Brasil pagou um preço altíssimo pelo seu reconhecimento. Um historiador oitocentista (Alexandre José de) Mello Morais fez a conta de quantos milhões de libras esterlinas foram pagos por esse reconhecimento. Além dos privilégio que era dado à Inglaterra e dos tratados comerciais, um empréstimo foi tomado pelo império brasileiro que pagava, na praça de Londres, todas as dívidas de Portugal com a Inglaterra. Você tem um caso muito interessante. Melo Morais dizia que o recebimento foi comprado por dois milhões de livras esterlinas", diz Guimarães.

O resultado explica a crescente impopularidade de D Pedro que, em 1831, abdicou em favor do filho de cinco anos e, segundo a professora da Uerj, está na origem da dívida externa brasileira.

"Foram os primeiros empréstimos internacionais do Brasil tomados com a casa Rotschild, em Londres, e daí por diante. Foi uma bola de neve. Eles foram sendo renegociados e cada vez com uma dívida externa maior. A origem da dívida externa brasileira que tanto se falou nos anos 1980 e 1990 está exatamente no tratado de reconhecimento em 1826", afirma a professora.

A Inglaterra se encarregou de levar D Pedro a bordo do navio de guerra Warspite. "A marinha inglesa sempre à mão para transportar os Braganças através do Atlântico!”, brinca Bethell.

Os britânicos também tiveram relevância ao passar para o papel os registros da história da independência. A primeira história geral do Brasil da chegada de D João em 1808 até a abdicação de D Pedro em 1831, publicada em dois volumes em 1836, foi escrita pelo inglês John Armitage, que morou no Rio entre 1828 e 1835.

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