Reconhecimento inédito pela França de obras espoliadas pelos nazistas vai facilitar devolução
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Durante a Segunda Guerra Mundial, cerca de 100.000 obras de arte foram roubadas dos judeus pelos nazistas na França. Pinturas, esculturas, objetos de arte e até instrumentos musicais foram saqueados, e tiveram de ser recuperados e devolvidos após a guerra. Quase 80 anos após a Liberação, algumas obras ainda não voltaram a seus proprietários, ou melhor, aos descendentes de seus proprietários. Uma lei inédita que reconhece essas espoliações foi promulgada no país no domingo (23).
A nova regulamentação vai facilitar a restituição dessas propriedades saqueadas dos judeus entre 1933 e 1945. Muitos historiadores dedicam suas carreiras a rastrear essas obras, que geralmente são exibidas publicamente em museus. Identificá-las, provar sua espoliação e depois devolvê-las é, no entanto, uma tarefa meticulosa que pode levar anos.
A nova lei facilitará aos descendentes de famílias saqueadas pelos nazistas a recuperação de suas propriedades. O alvo são as coleções públicas francesas, que supostamente contêm dezenas de pinturas, escritos e objetos tirados pelos nazistas de seus proprietários entre a ascensão de Adolf Hitler ao poder, em 1933, e o fim da Segunda Guerra Mundial.
Em termos práticos, essa nova lei possibilitará o desvinculamento de determinadas obras do patrimônio público por decreto, após a realização de todas as verificações habituais, para que elas possam ser rapidamente devolvidas aos legítimos proprietários que foram vítimas da perseguição nazista. Até agora, era necessário ter paciência enquanto o vaivém parlamentar autorizava ou não a restituição de uma obra de coleções públicas.
Missão especial para identificar obras roubadas por nazistas
A devolução dessas obras deve ser ainda mais rápida porque, em 2019, a França criou uma Missão de Busca e Apreensão de Bens Espoliados para identificar obras culturais de procedência duvidosa.
Até abril de 2023, 15 obras de coleções públicas francesas já haviam sido devolvidas aos seus legítimos proprietários, após anos de resistência administrativa. Com essa nova lei, os atrasos devem ser bastante reduzidos.
A via-crúcis dos descendentes
O cheiro de tabaco se espalha pela sala de estar de May Monteux. O cômodo não é tão pequeno, mas parece apertado: está cheio de móveis, com as prateleiras transbordando de livros, esculturas e bugigangas. Cada centímetro quadrado da parede é coberto por pinturas, algumas das quais têm uma história especial: foram roubadas pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial.
Seu proprietário era Marcel Monteux, avô de May. Esse colecionador de arte foi roubado por ser judeu. "Ele foi preso, internado no campo de Drancy em 31 de julho de 1944 e deportado para Auschwitz no comboio nº 77", diz sua neta à RFI, sentada em frente a uma xícara de café e algumas fotos antigas. "Ele não teve sorte, pois no dia seguinte houve uma greve dos ferroviários e os trens pararam de circular. Ele morreu assim que chegou; pegou tifo e não sobreviveu", lembra.
Hoje, May, de 90 anos, continua a luta de sua avó, sua "ídola" que, durante a Liberação, conseguiu que muitas obras de arte pertencentes a Marcel Monteux lhe fossem devolvidas. O próprio colecionador está imortalizado em uma pintura: um jovem elegante de terno e gravata borboleta, posando com um charuto e um jornal. A pintura está pendurada na sala de estar de May, em frente ao sofá.
Notas amareladas pelo tempo
Para localizar as obras saqueadas que não foram devolvidas à sua família, a aposentada contou com a ajuda da historiadora Emmanuelle Polack, especialista no mercado de arte durante a Ocupação nazista na França.
"Ela dispunha de uma lista bastante vaga, porque meu avô, seu marido, era um jogador e um grande gastador", ironiza May. Por exemplo, quando ele pedia dinheiro emprestado, penhorava um quadro. Então, para não se confundir, ele fazia uma lista", relata a descendente. Uma espécie de inventário, portanto, da coleção de Marcel Monteux.
Graças a essas anotações rabiscadas em papéis amarelados, May e Emmanuelle Polack conseguiram encontrar mais evidências para obter a devolução de uma pintura: Bord de rivière reflété dans l'eau, de Camille Bombois. A pintura está exposta em um museu em Passau, na Alemanha. No decorrer de seu trabalho, a historiadora viu essa pintura, cuja procedência era suspeita, e entrou em contato com o descendente do colecionador. Uma segunda pintura, exibida no mesmo museu alemão, também foi identificada como pertencente à família Monteux e retrata Jean-Paul Monteux, pai de May, pintado por Maurice Denis. No final do processo, duas obras foram encontradas e devem ser devolvidas nas próximas semanas.
"Razzia"
"Hitler foi recusado durante duas vezes na Escola de Belas Artes de Viena, e desenvolveu, por causa disso, uma amargura notável em relação ao episódio. Por causa disso, ele vai instituir um Estado-maior dedicadoà expoliação de obras de arte, especialmente aquelas que pertenciam às famílias judias, com uma cartografia muita precisa dos principais mercadores de arte, nos arredores da Praça Vendôme, em Paris, e igualmente nas grandes galerias da Rive Droite, e, depois, junto aos colecionadores mais famosos, como a família Rotschild", conta Emmanuelle Polack, historiadora e especialista no assunto.
Quando Hitler chegou ao poder em 1933, ele não perdeu tempo e começou a fazer espoliações de obras de arte e outras propriedades, visando principalmente os judeus. Na França, a partir do verão de 1940, "houve uma grande pilhagem [Razzia, na expressão como é utilizada em francês, usando a palavra de raiz árabe]", explica Polack. Cerca de 450 caixas [cheias de obras de arte, nota do editor] foram levadas para a embaixada alemã. Rapidamente, não havia espaço suficiente, então o Louvre ofereceu três salas e, finalmente, o Musée du Jeu de Paume tornou-se o local para armazenar as obras espoliadas", lembra a expert.
Após a Liberação, 60.000 objetos culturais saqueados foram devolvidos à França, graças ao trabalho da combatente da Resistência Francesa, Rose Valland. Uma grande parte foi devolvida, mas cerca de 2.000 pinturas, esculturas e objetos de arte cujos proprietários não puderam ser identificados ou encontrados foram confiados a museus franceses. Essas obras não pertencem aos museus nacionais", explica Emmanuelle Polack. "Eles são seus únicos protetores. Cabe a eles continuar a pesquisa de procedência", insiste.
"Trabalho de memória"
Há vários anos, a historiadora vem ajudando o Louvre a restaurar obras em suas coleções que foram identificadas como espoliadas, ou cuja procedência é suspeita. Ela auxilia os curadores dos departamentos em suas pesquisas, direcionando-os especialmente para arquivos que possam fornecer evidências, como um catálogo de leilão da Ocupação que atestaria uma venda forçada.
Mas a busca pela procedência se torna mais complicada a cada ano: os proprietários das obras, ou seus descendentes, desaparecem ou não sabem que sua família foi vítima de espoliação. Emmanuelle Polack é consciente disso: "Nunca conseguiremos devolver todas as obras, mas o que é realmente importante é fazer esse trabalho de memória. Parece-me que devemos isso à lembrança das vítimas dos abusos da Segunda Guerra Mundial, afirma à RFI.
Antes da lei promulgada no domingo (23), mesmo quando uma obra era identificada como saqueada de um museu francês, era necessário recorrer à Justiça para devolvê-la, pois as coleções nacionais são inalienáveis. A nova regulamentação facilita as restituições.
Um Chagall devolvido a herdeiros é leiloado por US$ 7,4 milhões
Uma pintura de Marc Chagall, que está entre as 15 obras roubadas pelos nazistas e devolvidas pela França aos herdeiros das famílias saqueadas em abril do ano passado, foi vendida por US$ 7,4 milhões em novembro de 2022 em um leilão organizado em Nova York.
A pintura a óleo "O Pai", pintada em 1911, foi adquirida em 1928 pelo luthier polonês David Cender, que perdeu todos os seus bens quando foi forçado a viver no gueto judeu de Lodz.
Deportado para o campo de Auschwitz, onde a mulher e a filha perderam a vida, o músico sobreviveu e passou a morar na França em 1958, onde faleceu em 1966, sem recuperar sua pintura.
Nesse ínterim, a obra foi exibida em exposições de arte e ficou demonstrado que foi o próprio Chagall quem a comprou de volta, provavelmente entre 1947 e 1953, desconhecendo sua origem, segundo o Ministério da Cultura francês.
Após a morte na França do artista judeu de origem russa em 1985, "O Pai" passou a fazer parte das Coleções Nacionais em 1988, antes de ser enviado ao Centro Pompidou e preservado no Museu de Arte e História do Judaísmo de Paris.
(Com informações recolhidas por Marion Cazanove, da RFI, e agências)
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