Acessar o conteúdo principal
Rendez-vous cultural

Coletivo sueco cria álbum de figurinhas com os trabalhadores mortos na Copa do Catar

Publicado em:

Quem nunca folheou, colecionou ou pelo menos viu o álbum de figurinhas da Copa do Mundo - qualquer Copa - com as fotos dos jogadores dos times selecionados? Nesta Copa do Catar, o jornalista Martin Schibbye e a designer Brit Stakston, ambos suecos, decidiram lançar o projeto "Cards of Qatar" (Cartas do Catar, em tradução livre), em que substituem os jogadores pelos trabalhadores mortos enquanto trabalhavam para construir a infraestrutura deste Mundial de 2022. 

Cartas com os nomes, fotos e histórias dos trabalhadores migrantes que morreram no Catar. Elas fazem parte do projeto Cards of Qatar.
Cartas com os nomes, fotos e histórias dos trabalhadores migrantes que morreram no Catar. Elas fazem parte do projeto Cards of Qatar. © Divulgação
Publicidade

Por Paloma Varón, da RFI

"Trata-se de uma coleção de histórias apresentadas em formato de figurinhas que se parecem às do tradicional álbum da Panini, essas que a gente coleciona em todas as Copas do Mundo desde que eu era criança – a gente se acostumou a colecionar jogadores, seleções, países. Mas, antes desta Copa do Mundo, houve um grande debate sobre números, estatísticas, sobre quantos morreram na construção, para que esta Copa do Mundo fosse possível", explica à RFI o jornalista Martin Schibbye, criador do projeto Cartas do Catar, que reúne 70 histórias de trabalhadores, publicadas desde junho deste ano. 

"E eu senti que, atrás das estatísticas, havia pessoas e nós, jornalistas, não estávamos contando suas histórias. Então eu fui para o Sul da Ásia e, com outros jornalistas, em Bangladesh, Índia e Nepal, para falar com o maior número possível de famílias que perderam seus entes queridos no Catar’", conta Schibbye, que começou este trabalho há dois anos e meio, ainda durante a pandemia, embora só tenha conseguido viajar em novembro do ano passado. 

Uma vez que ele tinha as histórias, o desafio era como apresentá-las para que chamassem a atenção dos fãs de futebol e de um público mais amplo. 

A responsável pela escolha do formato foi a especialista em estratégia midiática Brit Stakston, cofundadora da plataforma jornalística sueca Blankspot, junto com Schibbye. "Eu trabalho com o Martin há sete anos na Blankspot e desenvolvi a estratégia midiática deste fantástico projeto jornalístico. Para mim, é uma honra trabalhar nas Cartas do Catar, pela urgência do assunto, mas também pelas possibilidades que ele traz de comunicação, de atingir um novo público para o nosso trabalho". 

"O design foi feito para quem assiste aos jogos de futebol, para quem tem filhos que colecionam as cartas e figurinhas... Esta me pareceu a maneira mais natural de apresentar essas histórias: os cards funcionam como uma ponte para contar as histórias de cada trabalhador migrante. Nós queríamos destacá-los como as outras estrelas desta Copa do Mundo, queríamos aproveitar a paixão pelo futebol para mostrar os diferentes aspectos deste Mundial", sublinha Brit Stakston. 

Ao invés de jogadores profissionais, cada carta conta a história de trabalhadores migrantes que foram ao Catar para conseguir manter suas famílias, mas nunca retornaram aos seus países. "Histórias de trabalhadores migrantes que buscam dar um futuro melhor às duas famílias foram contandas muitas vezes, por décadas, mas a gente queria, nesta caso, apresentá-las de uma nova maneira, para atingir fãs de futebol", completa Schibbye.

Não ao boicote, sim à memória

O jornalista explica que não se trata de boicotar a Copa do Catar, mas de manter viva esta memória de explorações para que elas não voltem a acontecer.

"Uma das famílias que eu entrevistei quando eu fui para o Nepal foi a viúva de Bine Bishworkarma; o seu marido nunca voltou pra casa. Ele morreu no Catar, mas o seu corpo nunca foi mandado de volta. Ela tinha muitas perguntas sobre o que aconteceu com ele no Catar. E, para ter algo que parecesse um funeral, ela pegou suas roupas antigas, num guarda-roupa, e as queimou numa tradição fúnebre", disse.

"Eu lhe perguntei sobre os sentimentos dela em relação a esta Copa do Mundo para a qual o seu marido trabalhou - ele era um trabalhador muito talentoso e construiu pisos com materiais preciosos, como mármore. Ela me disse que leu no Facebook pessoas clamando por um boicote, mas ela disse que queria apenas que as pessoas pudessem ver o belo trabalho que o seu marido fez, que lembrem dele, que vejam que é um trabalho bem feito. Suas palavras têm estado comigo neste projeto : é tudo sobre ver e reconhecer o trabalho e não esquecer das pessoas", continua Schibbye. 

Caminhos inesperados

Confeccionadas em junho deste ano, as cartas seguiram diversos caminhos, alguns até mesmo inseperados pelos criadores do projeto. 

"As cartas têm o seu jeito único de achar o caminho até outros países. Ontem um padre na Alemanha colocou as cartas na sua igreja, e acendeu uma vela para cada carta. Então as pessoas que visitarem essa igreja poderão ler essas histórias. O Museu do Design, em Copenhague, nos estendeu a mão, e ofereceu exibir o projeto. Professores de toda a Suécia têm nos contatado para pedir as cartas para discutir esse problema com seus alunos em sala de aula. As cartas também foram traduzidas e publicadas em oito línguas. E, também aqui na Suécia, nas bancas de revistas, além das figurinhas da Panini, as nossas são distribuídas gratuitamente num pacote com oito amostras", conta. 

A reportagem da RFI viu as cartas exibidas no Museu do Design, em Cpenhague, na Dinamarca. Anders Eske Laurberg Hansen, o curador da exposição em Copenhague, contou que decidiu exibir as cartas porque, além de mostrarem como o design está em todos os campos, elas incitam os espectadores a agir e exigir mudanças e, portanto, também são em grande parte medida políticas.

O turista finlandês Miikka contou à reportagem o que sentiu ao ver a exposição: "Eu fiquei bastante surpreso ao ver esta exposição no Museu do Design, porque eu fui lá para ver o design nórdico e então eu achei esta parte sobre o Catar e os problemas com os trabalhadores estrangeiros. Foi muito interessante ver como eles pensaram esta exposição, especialmente esta das Cartas do Catar, porque eu colecionava as figurinhas da Copa do Mundo quando eu era criança e agora eles usam o mesmo estilo para trazer ao conhevcimento do público o quão ruim é a situação dos trabalhadores estrangeiros no Catar, na construção da infra-estrutura para esta Copa do Mundo". 

Cartas foram enviadas à FIFA

Além de alcançar um público amplo, Martin tenta que as Cartas do Qatar alcancem os responsáveis pela Copa: "Nós enviamos as cartas para todos os patrocinadores desta Copa, para a FIFA, para o Catar. Nós gostaríamos de ter as respostas deles, para ter a certeza de que isso nunca mais vai acontecer: para fazer reformas trabalhistas, melhorias nas leis de imigração etc. Até agora não recebemos nenhuma respsta da FIFA ou do governo do Catar. A Adidas foi a única empresa que nos respondeu, dizendo que não foi decisão deles que a Copa acontecesse no Catar, mas que estavam atentos para melhorar a situação dos trabalhadores migrantes. Isso mostrou que eles foram tocados pelas histórias", finaliza.

Cards of Qatar em exibição no Museu do Design, em Copenhague. O projeto coloca nomes, fotos e histórias dos migrantes que morreram enquanto tabalhavam para construir a infra-estrutura para a Copa do Mundo de 2022, no Catar.
Cards of Qatar em exibição no Museu do Design, em Copenhague. O projeto coloca nomes, fotos e histórias dos migrantes que morreram enquanto tabalhavam para construir a infra-estrutura para a Copa do Mundo de 2022, no Catar. © Divulgação

Direitos humanos e justiça social

Segundo Anders Eske Laurberg Hansen, curador da exposição no Museu do Design de Copenhague, “'Trabalhadores Convidados'” faz parte de um novo espaço do museu denominado “AKUT” (que se traduz em “Agudos”). "AKUT é um espaço para exposições temporárias que mudam de temática cerca de quatro vezes por ano. O espaço dedica-se ao design e artesanato contemporâneos que representam o que está acontecendo no mundo agora e como o design se cruza com temas ambientais, sociais e políticos."

"Sentimos que os 'Trabalhadores Convidados' se encaixam na ideia e nos temas relacionados ao AKUT de várias maneiras diferentes. A exposição é muito relevante, pois foi inaugurada poucos dias antes do início da Copa do Mundo da FIFA e, portanto, é diretamente voltada para o evento. Os quatro projetos da exposição comentam a exploração dos trabalhadores migrantes no processo de construção do ambiente necessário para a Copa do Mundo e, portanto, abordam temas como injustiça social e direitos humanos. Os projetos também podem ser vistos como tendo elementos ativistas que incitam os espectadores a agir e exigir mudanças e, portanto, mostram ao nosso público o quão amplo é o campo do design", afirma.

Para Hansen, foi importante trazer “Cartas do Catar” para a exposição, ao lado do documentário “A Taça dos Trabalhadores”, "porque ambos os projetos dão voz aos trabalhadores migrantes e contam suas histórias".

"Queríamos garantir que as vidas dos trabalhadores não fossem meramente representadas como fatos e estatísticas, mas vidas humanas reais. 'Cartas do Catar' não apenas coloca um rosto nas vítimas, mas também destaca as consequências de longo alcance que essas mortes inexplicadas tiveram para as famílias que ficaram para trás", analisa.

Design e política

"‘Cartas do Catar’ traz um elemento de design para a exposição que se encaixa no objetivo principal do museu de exibir design. As cartas são um bom exemplo de quão amplo é o campo do design, como ele está evoluindo e que o design também pode ter aspectos políticos. Além disso, elas mostram que um amplo espectro de profissionais, neste caso jornalistas, utiliza elementos do campo do design em seu trabalho e como meio de comunicação".

Hansen garante que a reação do público à exposição tem sido muito positiva. "Muitos ficaram agradavelmente surpresos ao ver uma exposição com elementos de ativismo em uma instituição estabelecida como nosso museu. Eles gostam que um museu de design também possa fornecer uma plataforma para debate sobre tópicos complicados, como direitos humanos e injustiça social", conta.

"Recebemos muitos comentários sobre o fato de que a exposição é esteticamente agradável, com fotos e designs bonitos e emocionantes, mas também tem uma mensagem importante a transmitir. Eles gostam de como a exposição mostra como o design pode ser algo que usamos no nosso dia a dia, mas também pode ser um meio de chamar a atenção para questões importantes", conclui Hansen. 

Mudanças à vista?

No início desta semana, o diretor geral da Organização Internacional do Trabalho (OIT) se declarou "razoavelmente otimista" sobre a possibilidade de um acordo com a FIFA para que os direitos sociais sejam levados em consideração no momento de definir as sedes das Copas do Mundo, depois das críticas ao Mundial de 2022 no Catar.

A agência da ONU propõe "uma revisão diligente dos países candidatos" a organizar a Copa, afirmou em entrevista à AFP Gilbert F. Houngbo, que se encontrou no domingo em Doha com o presidente da Federação Internacional de Futebol (FIFA), Gianni Infantino.

"Todas as discussões que tivemos até o momento me levam a acreditar que a FIFA está mais que decidida a garantir que, nos próximos Mundiais, a questão social e o respeito às normas de trabalho sejam fundamentais", afirmou Houngbo.

NewsletterReceba a newsletter diária RFI: noticiários, reportagens, entrevistas, análises, perfis, emissões, programas.

Acompanhe todas as notícias internacionais baixando o aplicativo da RFI

Veja outros episódios
Página não encontrada

O conteúdo ao qual você tenta acessar não existe ou não está mais disponível.