Acessar o conteúdo principal
Rendez-vous cultural

Corpos periféricos protagonizam filmes brasileiros no Festival de Cinema de Toulouse

Publicado em:

Uma família negra e pobre da periferia de Belo Horizonte protagoniza a narrativa do longa "Marte Um", ocupando espaços de fala raros no cinema nacional. A mesma coisa em "Rio Doce", onde o jovem protagonista, negro e do subúrbio de Olinda, atravessa  a ponte simbólica para os bairros de classe média de Recife, deixando evidente a fratura da desigualdade. O curta "Sideral" desvia o olhar para as periferias nordestinas e a mulher, neste mosaico de corpos periféricos brasileiros do Cinélatino 2022, o Festival de Cinema de Toulouse, no sudoeste da França.

Cena de "Rio Doce", primeiro longa-metragem do diretor pernambucano Fellipe Fernandes, em competição no Cinélatino, o Festival de Cinema de Toulouse.
Cena de "Rio Doce", primeiro longa-metragem do diretor pernambucano Fellipe Fernandes, em competição no Cinélatino, o Festival de Cinema de Toulouse. © Pedro Sotero
Publicidade

Márcia Bechara, enviada especial à Toulouse

Os corpos e personagens que franceses e europeus viram na tela grande nas produções brasileiras do Cinélatino em 2022 raramente fizeram parte do imaginário das telenovelas brasileiras ou mesmo de longa-metragens consagrados do cinema nacional. Sem caricaturas e com um olhar atento e legítimo, diretoras e diretores do cinema brasileiro atual mostraram em Toulouse uma miríade de vozes periféricas que protagonizam narrativas, fazem escolhas, reagem a contextos político-sociais e expressam a dor e a delícia de serem o que são.

Para o diretor Fellipe Fernandes, que estreou na  competição oficial do festival seu primeiro longa-metragem "Rio Doce", é chegada a hora de abrir alas para novos corpos e paisagens no cinema nacional. "A gente precisa ouvir outras vozes, ouvir e mergulhar em outras histórias, em outros universos e outras paisagens. Para mim a questão da paisagem é essencial... Como é que conhecemos tanto os bairros da Zona Sul do Rio de Janeiro e só muito recentemente viemos saber o que era Madureira?", questiona o cineasta pernambucano. "Existe uma necessidade e um espaço para que novas paisagens, rostos e palavras sejam inseridas", acredita.

Marginalizados

Os personagens principais dos filmes brasileiros exibidos este ano no Festival de Cinema de Toulouse são negros, jovens, mulheres, índios, mestiços, homossexuais, essencialmente pobres e periféricos, que passaram a vida às margens da sociedade. Mas que nem por isso deixaram de sonhar e projetar o futuro a partir da complexidade de seus próprios dramas pessoais, geralmente subjugada pela vontade dos invasores (no caso de grileiros de terras indígenas), os patrões ou os governos totalitários.

"Desde muito pequeno tenho interesse por contar histórias, via televisão, via novela, que era o que chegava em um primeiro momento, via os filmes que passavam na Globo, e me interessava contar histórias", relembra Fernandes. "Mas, ao mesmo tempo, esse desejo de contar histórias era limitado justamente pela falta de semelhança e reconhecimento da minha realidade naquelas histórias que estavam sendo contadas", explica o diretor pernambucano.

Para Fernandes, a questão é também política, como demonstram as políticas públicas que alavancaram o cinema brasileiro num passado recente. "Acho que a gente viveu um momento político que propiciou o surgimento dessas vozes, a gente tinha um foco nas políticas públicas de Cultura para a ascensão de cineastas, produtores e profissionais do audiovisual que até então não tinham tido a chance de produzir com recursos públicos", avalia Fernandes.

"Corpos periféricos não interessam o governo atual"

O diretor Carlos Segundo, que compete nesta edição do Cinélatino com seu curta-metragem "Sideral", além de exibir o longa "Fendas" na retrospectiva, vai mais longe e acredita que o governo brasileiro atual não tem interesse nas vozes periféricas do cinema nacional. "Acho que filmes que abordam este universo, que se colocam neste lugar dos corpos periféricos, têm de fato alcançado um número de produção muito grande, mas a gente vivencia um momento muito complicado em nosso país enquanto política pública", diz.

"Acho que não são os temas, mas quem está nesse momento decidindo se eles devem ou não vir à tela é que é o grande problema. Tem pelo menos uns 4 a 6 anos que a gente vivencia uma destruição do que foi construído a duras penas, num momento em que a gente tem uma pluralidade de corpos sendo apresentados, ou seja, isso não é interessante para esse governo atual", afirma o cineasta.

O diretor, selecionado para Cannes no ano passado e com outras passagens pelo Cinélatino de Toulouse, conta que em "Sideral" sobrevoa o universo feminino marginalizado por coerções patriarcais. "O universo que eu abordo, que eu venho descobrindo nos últimos trabalhos, onde estou me arriscando, se formos pensar, também se coloca de uma forma periférica, de subverter essa objetificação [do corpo feminino], a mulher que tem esse olhar vindo de um patriarcado machista, historicamente construído em nosso país", afirma. "Sideral é isso, uma pequena família com pano de fundo de ficção científica onde acontece o lançamento ao espaço sideral de um primeiro foguete tripulado por brasileiros, com a personagem feminina que circula no mesmo lugar histórico onde as mulheres são colocadas, da violência subjetiva e simbólica, num momento de decisão da vida", detalha.

Subjetiva indígena

Completa a seleção de corpos periféricos brasileiros no Festival de Cinema de Toulouse o belíssimo documentário "A Mãe de todas as lutas", assinado por Susanna Lira, que mistura gerações de famílias indígenas na beira do Rio Doce para contar histórias trágicas e extremas da luta pela terra no Brasil. Uma delas é o massacre de Eldorado dos Carajás, ocorrido no sul do Pará em 17 de abril de 1996, quando 19 trabalhadores sem-terra que haviam ocupado a Fazenda Macaxeira foram assassinados pela Polícia Militar paraense, com destaque especial, em outro tempo-espaço, para o rompimento criminoso da barragem nas imediações de Mariana, que ameaçou não apenas a sobrevivência do rio, mas a de todas as populações ribeirinhas. A diretora opta por narrar o filme a partir da subjetiva indígena, uma escolha sábia que cria momentos de pura beleza, resistência e sabedoria.

O Festival Cinélatino 2022 fica em cartaz em Toulouse até o dia 3 de abril e sete filmes brasileiros concorrem a prêmios na competição oficial.

NewsletterReceba a newsletter diária RFI: noticiários, reportagens, entrevistas, análises, perfis, emissões, programas.

Acompanhe todas as notícias internacionais baixando o aplicativo da RFI

Veja outros episódios
Página não encontrada

O conteúdo ao qual você tenta acessar não existe ou não está mais disponível.