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Radar econômico

Ameaça de ‘contágio’ da greve nas montadoras americanas preocupa fabricantes na França

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As montadoras europeias acompanham de perto o desenrolar da maior greve em décadas no setor automobilístico americano. Iniciado na sexta-feira (15) nos Estados Unidos, o movimento por reajustes salariais e melhoria dos benefícios promete ser duradouro e encontra eco em reivindicações de trabalhadores do setor na Europa, igualmente atingida por um contexto inflacionário que achatou o poder de compra.

O presidente do sindicato United Auto Workers (UAW), Shawn Fain, discursa no início da greve nas montadoras em Detroit, Michigan, em 15 de setembro de 2023.
O presidente do sindicato United Auto Workers (UAW), Shawn Fain, discursa no início da greve nas montadoras em Detroit, Michigan, em 15 de setembro de 2023. AFP - MATTHEW HATCHER
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O pleno emprego nos Estados Unidos favorece os trabalhadores na queda de braço com as Big Three – as fabricantes Ford, General Motors e Stellantis. “O mercado de trabalho americano ainda está sob tensão e, histórica e economicamente, esses são os melhores momentos para negociar aumentos de salários. "Os sindicatos têm nas mãos a capacidade de pressionar o sistema agora”, aponta Jeremy Guez, professor associado de Economia e Negócios Internacionais da renomada escola de administração HEC Paris, em entrevista à RFI.

As Big Three empregam 12,7 mil pessoas no país e são responsáveis por 3% do PIB americano, segundo a associação AAPC (American Automotive Policy Council). Assim, em 10 dias, a greve tem o potencial de causar um prejuízo de US$ 5 bilhões à economia dos Estados Unidos. Donna Kesselman, especialista em sindicalismo nos Estados Unidos e professora da Universidade Paris-Est Créteil, aposta que o movimento vai durar bem mais do que isso. 

“As montadoras têm um estoque de, em média, 37 dias. Ou seja, uma greve de menos de 37 dias não teria muito impacto. Então quando os trabalhadores americanos decidem entrar em greve, eles precisam estar determinados a aguentar firme”, diz. “A GM e a Ford têm estoques de 50 a 60 dias, e a antiga Chrysler tem estoque de 70 dias. Se eles começaram, foi para durar, e foi por isso que eles visaram certas fábricas estratégicas, em que eles conseguem bloquear a produção.”

Enquanto os empregados de outros setores industriais, como da aviação ou maquinário agrícola, já obtiveram aumentos para compensar a alta da inflação anual de mais de 3% acumulados, os do automotivo não tiveram sucesso nas negociações salariais que duraram dois meses. O último reajuste foi há quatro anos, de 6%, alega Shaw Fain, presidente do poderoso UAW (sigla para United Auto Workers, o maior sindicato da categoria). Os lucros líquidos de US$ 20,25 bilhões das três maiores indústrias de automóveis do país, apenas no primeiro semestre do ano, foram a gota d’água para o início do movimento.

“Concretamente, um prejuízo de US$ 5 bilhões pode causar muitos danos à economia americana”, ressalta Guez. “Essa greve simbolicamente representa a rixa entre os trabalhadores e os executivos, entre os mais privilegiados nos Estados Unidos e os que ficaram para trás, entre aqueles que se deram bem nas últimas décadas de crescimento econômico e aqueles que afirmam que, apesar do crescimento, não conseguiram se beneficiar.”

Eco na Europa

No exterior, a questão é saber se o que acontece nas fábricas dos Estados Unidos poderá se reverberar para outros países nos quais a conjuntura econômica é semelhante. A Stellantis, fruto da fusão entre a americana Chrysler e a francesa PSA, da Peugeot-Citröen, é a mais diretamente impactada pela possibilidade de ‘contágio’ da greve nas plantas instaladas na Europa.

Os principais sindicatos de trabalhadores franceses já haviam marcado a retomada das mobilizações sociais, no dia 13 de outubro, com foco na perda do poder aquisitivo.

Outro aspecto que aproxima os dois contextos é a insegurança dos trabalhadores diante da transição para os veículos elétricos. Nos Estados Unidos ou na Europa, os sindicatos temem que a saída dos combustíveis fósseis enxugue os salários e as vagas.

O economista Rafael Cagnin, do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial, no Brasil, nota que os processos de "destruição criativa" nos meios produtivos costumam ser acompanhados por tensões sociais. "Não necessariamente as pessoas que perdem o emprego nesse processo vão obter emprego em outro. Existem diferenças qualitativas dessa ocupação e sobre a capacidade das gerações anteriores de adquirir os novos conhecimentos que são requisitos para os empregos que serão criados", salienta.

Ele avalia que o movimento de greve em si não tende a se espalhar pelos países que abrigam as montadoras em questão, uma vez que a força dos sindicatos e a capacidade do Estado de mediar esses conflitos é muito diferente na Europa, nos Estados Unidos ou na América Latina. "Entretanto, a transição tecnológica, de transição climática e de reforço das políticas industriais, com apoio público às empresas para acelerarem esses processos, é algo que vem sendo verificado em vários países. Desse ponto de vista, sim, acho que é possível a gente ver movimentos semelhantes, dessa tensão entre capital e trabalho, em outros países", observa. 

No caso específico do Brasil, Cagnin ressalta que a transição para veículos com menos emissões já começou com os biocombustíveis, um setor estabelecido há décadas no país, e a passagem para os carros elétricos ainda é incipiente. Além disso, de forma geral, o dinamismo da produção industrial brasileira segue baixo, o que leva a classe trabalhadora no setor à cautela. 

"Por ora, não vemos nada parecido com o que há nos Estados Unidos – muito pelo contrário. É um setor muito fragilizado por uma sequência de períodos bastante adversos da produção industrial", afirma o economista. "Também tivemos o reposicionamento das multinacionais, com a saída da Ford do Brasil. Essas grandes empresas, na medida em que vão migrando para uma rota tecnológica elétrica, elas vão redesenhando as suas estratégias internacionais. E as plantas produtivas no Brasil muitas vezes são antigas, produzindo modelos que às vezes só existem no Brasil ou no mercado sul-americano", indica.

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