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Linha Direta

Argentinos e ucranianos rezam pela paz e protestam contra Vladimir Putin na Praça de Maio

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Com a bênção do papa Francisco, milhares de jovens foram convocados a participar de uma oração ecumênica nesta quarta-feira (2) na Praça de Maio, em frente à Catedral de Buenos Aires, onde morava o arcebispo Jorge Bergoglio antes de se tornar o chefe da Igreja Católica. Paralelamente, estão previstas manifestações contra a guerra na Ucrânia e a ambígua posição do governo argentino ante o conflito que opõe a Rússia às potências ocidentais.

Myroslava e Anton pedem mais firmeza contra ataques da Rússia.
Myroslava e Anton pedem mais firmeza contra ataques da Rússia. © RFI/ Márcio Resende
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Márcio Resende, correspondente da RFI em Buenos Aires

A oração pelo fim da guerra na Ucrânia está convocada para as 17 horas, no horário local, em torno da "oliveira da paz", árvore plantada em 1996 na Praça de Maio pelo então arcebispo Jorge Bergoglio, muito antes de sua ascensão ao pontificado no Vaticano. A iniciativa da reza coletiva, aberta a fiéis de outras religiões, partiu da Fundação "Scholas Occurrentes", uma rede internacional de estudantes criada na época em que o papa Francisco ainda morava em Buenos Aires.

A ideia reedita o que aconteceu há 19 anos, em março de 2003, quando Bergoglio promoveu a mesma manifestação de fé pelo fim de outra guerra, a do Iraque, depois da invasão por parte dos Estados Unidos.

A Casa Rosada, palácio do Governo argentino, também fica em frente à Praça de Maio. Por isso, muitos vão ao local não para rezar, mas para protestar contra a invasão da Ucrânia pela Rússia e a posição ambígua do presidente Alberto Fernández. Ele tem evitado condenar Moscou pela invasão à ex-república soviética, uma postura que pode, na avaliação de alguns analistas, prejudicar a reivindicação argentina de soberania sobre as Ilhas Malvinas.

A ucraniana Myroslava Sambor, 38 anos, estará presente na Praça de Maio, assim como tem participado das manifestações em frente à embaixada da Rússia em Buenos Aires contra os ataques ao seu país.

"A Ucrânia precisa do nosso apoio. Não só dos nossos pensamentos ou das nossas orações. Precisa de ações concretas", defende Myroslava, em um abaixo-assinado de "Ajuda à Ucrânia" na plataforma Change. Há demandas para que o governo argentino se una aos esforços de sanções econômicas contra o governo de Vladimir Putin e empresas russas, além de ajuda financeira e humanitária à Ucrânia. Os signatários sugerem, por exemplo, a suspensão de transferências bancárias para a Rússia e a interdição dos canais russos de notícias, acusados de espalhar desinformação.

As petições, no entanto, esbarram na neutralidade do governo argentino, que tem evitado assumir uma postura firme contra o seu aliado Vladimir Putin.

"Com esta petição, poderíamos mudar a neutralidade da Argentina. Entendo que o governo argentino tenha muitos acordos com a Rússia, mas é desumano não reconhecer que há uma guerra. A petição tenta mudar essa postura", acredita Myroslava. A entrevista da ucraniana à RFI é interrompida cada vez que a emoção lhe embarga as palavras.

"A minha família está em Kiev, protegendo-se dos bombardeios num refúgio. Eles ouvem as explosões cada vez mais perto. Escolheram ficar lá para proteger a casa", descreve Myroslava.

 

Manifestantes penduram cartazes contra Vladimir Putin na Embaixada da Rússia em Buenos Aires.
Manifestantes penduram cartazes contra Vladimir Putin na Embaixada da Rússia em Buenos Aires. © RFI/ Márcio Resende

Pressão por ações

Proporcionalmente, a comunidade ucraniana na Argentina é a maior da América Latina e uma das maiores do mundo. Tem quase os mesmos 500 mil nativos e descendentes que o Brasil, equivalentes a 1,1% da população argentina.

Anton Griga, 36 anos, conhece bem o que é uma invasão russa. Em maio de 2014, ele partiu da sua Donetsk natal para uma viagem à Argentina, mas nunca mais retornou. Três dias depois do embarque, as tropas de Putin ocuparam a região, fazendo de Donetsk uma república separatista.

"A posição do governo argentino deveria ser mais firme. Entendo que a Argentina tenha necessidades financeiras, mas não dá para se associar com um assassino", adverte Anton, em entrevista à RFI.

A argentina Ludmila Mariotti não tem ligações com a Ucrânia, mas também critica a posição argentina.

"A Argentina deveria aplicar sanções econômicas contra a Rússia. O governo quer ficar bem com a Rússia, mas deveria ter uma posição muito mais firme", defende.

Quem também espera mais do governo argentino é o chefe da embaixada da Ucrânia em Buenos Aires, Sergiy Nebrat.

"Quero pedir sanções econômicas da Argentina contra a Rússia", avisou.

Em cima do muro

Na terça-feira (1), em discurso no Congresso por ocasião das sessões legislativas de 2022, o presidente argentino pediu um minuto de silêncio pelas vítimas "da invasão militar da Federação Russa na Ucrânia", mas nem repudiou nem condenou o que chamou de "violência bélica".

O ministro das Relações Exteriores, Santiago Cafiero, defendeu a "neutralidade" da Argentina na guerra, negando um endurecimento na postura argentina em relação à Rússia.

"O único alinhamento da Argentina é com os interesses dos argentinos. Neste conflito, não temos de escolher um lado", sentenciou o chanceler.

Apenas 24 horas antes, a Argentina parecia ter abandonado o seu jogo de equilíbrio diplomático que, aos olhos das potências ocidentais, é visto como um alinhamento com os interesses russos.

"A Argentina reitera à Federação Russa que cesse imediatamente o uso da força e condena a invasão da Ucrânia, assim como as operações militares no seu território", discursara o chanceler argentino, em Genebra, durante o 49º período de sessões do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, órgão atualmente presidido pela Argentina.

Era a primeira vez que a Argentina usava as palavras "condenação" e "invasão" para definir o ataque da Rússia contra a Ucrânia.

"Em um discurso em Genebra, no Conselho de Direitos Humanos, com a Argentina na presidência do conselho da ONU, não tinha como evitar abordar o assunto. Era preciso uma atitude nítida", apontou à RFI o ex-chanceler argentino Jorge Faurie (2017-2019). Na opinião do ex-ministro, "a política externa do governo não tem nenhuma credibilidade porque muda muito o tempo todo".

A ambiguidade argentina tem desnorteado diplomatas e analistas. O governo evita condenar a Rússia e limita-se a pedir uma "negociação diplomática".

Tiro no pé na questão das Malvinas

Na semana passada, quando Putin reconheceu as independências das repúblicas separatistas de Donestk e Lugansk, na região do Donbass, abrindo caminho para a invasão do território ucraniano, a Argentina emitiu uma nota de dois parágrafos nos quais não citou a Rússia nem os princípios de "respeito pela soberania" e de "integridade territorial".

Dois dias depois, com a Ucrânia já invadida, Fernández abusou dos eufemismos. Em vez de "invasão", optou por "situação gerada na Ucrânia". Em vez de "ataque" empregou  a fórmula "ações empreendidas". E colocou a Ucrânia em pé de igualdade com a Rússia ao afirmar que existe uma "escalada bélica".

Ex-chanceleres argentinos advertiram que a omissão do princípio de integridade territorial, visando proteger a aliada Rússia, atentava contra a base da reivindicação argentina de soberania sobre as Ilhas Malvinas, ocupadas pelos ingleses em 1833.

"Para a Argentina, o respeito pelo princípio de integridade territorial é dramático devido ao conflito sobre as Malvinas", sublinha Jorge Faurie.

O analista argentino Julio Burdman, especializado em geopolítica, explica que a Argentina "tinha de condenar a invasão de um Estado a outro e destacar o princípio de integridade territorial que sustenta em relação às Malvinas".

"Para a Argentina, a autodeterminação dos russos de Donestk e de Lugansk tem de ser vista com cuidado, porque poderia ser o mesmo critério a ser usado pelos habitantes das Malvinas para impedir que a Argentina recupere as ilhas", compara.

Equilibrismo

Burdman define a posição inicial da Argentina como "um equilíbrio prudente". "O objetivo da Argentina a médio e longo prazos é duplicar o volume da sua relação com a China. Nesse sentido, a Rússia e a China formam uma aliança de futuro. O temor da Argentina é que uma posição muito explícita, para um lado ou para o outro lado, possa afetar a relação com os Estados Unidos ou com a China", observa.

No dia 3 de fevereiro, em visita ao Kremlin, vazou uma conversa entre Fernández e Putin na qual o argentino dizia ao homólogo russo que "é preciso ver a maneira através da qual a Argentina poderia se transformar na porta de entrada da Rússia na América Latina de uma forma mais decidida" e que "é preciso deixar a dependência tão grande que a Argentina tem dos Estados Unidos", indicando que a Rússia poderia assumir esse papel.

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