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“Mulheres que não podem trabalhar nem ir à universidade tentam se matar”, diz psicóloga afegã

Desde o anúncio feito pelos talibãs no último sábado (24), que proíbe as afegãs de trabalharem para organizações não-governamentais no país, todas as ONGs locais dirigidas por mulheres tiveram que fechar suas portas e aquelas que empregam mulheres operam com grandes dificuldades, devido à redução de suas equipes. A medida agrava a situação humanitária no Afeganistão e desperta reações da comunidade internacional.

Afegãs que trabalham para a ONG Médicos Sem Fronteiras atendem um jovem no hospital Kunduz, ao norte de Cabul, em 20 de maio de 2015.
Afegãs que trabalham para a ONG Médicos Sem Fronteiras atendem um jovem no hospital Kunduz, ao norte de Cabul, em 20 de maio de 2015. © Rahmat Gul / AP
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Por Sonia Ghezali, correspondente da RFI na região

Os chefes da diplomacia das potências do G7 convocaram os talibãs nesta quinta-feira (29) a revogarem "urgentemente" a proibição "irresponsável e perigosa" imposta às mulheres de trabalharem em ONGs, sob o risco de a decisão afetar "milhões de afegãos". Na terça-feira (27), 15 membros do Conselho de Segurança da ONU já haviam manifestado sua "profunda preocupação" com esta proibição, alertando para o "impacto significativo e imediato" nas operações humanitárias.

Posição que também foi seguida na quarta-feira (28) pelos ministros das Relações Exteriores de 12 países e da União Europeia, incluindo Estados Unidos e Reino Unido, que pediram ao governo talibã que reverta sua decisão.

Distantes dos esforços da comunidade internacional, afegãs compartilham suas frustrações, preocupações e esforços perante a decisão do regime talibã. Maryam, cujo nome foi alterado por questões de segurança, é diretora de uma ONG que fabrica próteses ortopédicas. Desde domingo (25), suas funcionárias e ela mesma são obrigadas a ficarem em casa.

“Se não tivermos mulheres na ortopedia, as pacientes não receberão atendimento, porque elas não podem ser atendidas por homens”, lamenta. “Eu sou deficiente. Perdi minhas duas pernas em uma explosão. Mas, apesar de tudo, não tive uma vida limitada: estudei até o mestrado e me tornei alguém que ajuda outras mulheres como eu.”

Tentativas de suicídio

Já Somaya é psicóloga. Desde que as mulheres foram banidas da vida profissional, de espaços públicos e não têm mais acesso à educação, ela tem lutado para oferecer apoio a suas pacientes. “Muitas meninas que não podem mais trabalhar e ir para a universidade tentam cometer suicídio. Algumas das minhas pacientes tomaram veneno de rato, tentaram acabar com a vida para escapar dessa morte progressiva que estamos sofrendo”, lamenta a afegã.

“Essa situação é muito difícil para mim, mesmo sendo psicóloga. Mas faço o possível para motivar outras mulheres que vêm me ver. Digo a elas que esta situação não vai durar para sempre”, continua.

Somaya, no entanto, não foi impedida de continuar a trabalhar, porque a ONG que a emprega é subordinada ao Ministério da Saúde. Ela não sabe, porém, por quanto tempo escapará deste cerco cada vez mais fechado em torno das mulheres no Afeganistão.

Felizmente, ONGs que trabalham na área médica têm conseguido reter suas funcionárias quando estas trabalham sem precisar se deslocarem. O regime talibã lhes permite, por enquanto, continuar suas atividades.

Por outro lado, mulheres que trabalham em clínicas móveis, essenciais para o acesso à assistência em áreas rurais, isoladas e remotas, não estão mais autorizadas a trabalharem, assim como as mulheres em setores humanitários não-médicos. As consequências desta medida são consideráveis no atual contexto afegão. O país atravessa uma crise humanitária que, atualmente, é uma das mais graves do mundo.

Mulheres são 38% da força de trabalho

As ONGs que suspenderam suas atividades esperam que o Talibã reverta essa proibição, porque as consequências são desastrosas, explica Reshma Azmi, vice-diretora da ONG Care no Afeganistão, que luta contra a pobreza e a fome no mundo.

“Tivemos mais de 700 mil beneficiários este ano e mais de meio milhão deles eram mulheres e crianças. Além disso, as mulheres representam 38% de nossa força de trabalho e são elas que atuam junto a nossas beneficiárias. Sem nossas colegas, perderemos o acesso à metade da população”, lamenta Reshma Azmi.

Vale lembrar que, sob o regime talibã, o atendimento a mulheres só é possível por outras mulheres, uma vez que os talibãs exigem total segregação dos sexos. É importante destacar também que as ONGs afegãs que empregam mulheres ou são dirigidas por elas não têm representatividade, sem qualquer influência política ou financeira.

A ONU já promoveu diversas reuniões de emergência desde o anúncio. Uma delegação da Missão de Assistência das Nações Unidas no Afeganistão chegou a se encontrar com o ministro afegão da Economia em Cabul, na última segunda-feira (26), mas sem sucesso.

O ministro reiterou que diversas denúncias foram transmitidas às autoridades talibãs sobre o desrespeito ao uso do véu islâmico por mulheres que trabalham em ONGs, motivando a liderança do regime a tomar essa decisão que, no momento, “não diz respeito à ONU”.

Impasse

O impasse agora se estabelece se a ONU vai manter suas missões no Afeganistão, apesar desta exclusão das mulheres, que vai contra os valores defendidos pelas Nações Unidas e pelos doadores que permitem o financiamento de todos os projetos no Afeganistão.

Essa proibição de mulheres afegãs trabalharem para ONGs apenas confirma que o radicalismo do movimento talibã continua detendo a última palavra, alheio à opinião da comunidade internacional, ou até mesmo às perdas significativas que isso representa, mais precisamente milhões de dólares em ajuda humanitária, além da garantia de renda para milhões de famílias que dependem dos rendimentos de mulheres que trabalham em ONGs neste país mergulhado em uma grave crise econômica.

Esta proibição dá continuidade à exclusão das mulheres da vida e do espaço públicos pelo Talibã desde que assumiram o poder. Desde então, as mulheres perderam o direito ao ensino secundário e superior, elas não têm permissão para irem a parques, banhos públicos, academias ou ginásios esportivos, ou de trabalharem no setor público.

Mas essas decisões não são unânimes mesmo dentro do próprio movimento talibã e algumas vozes parecem ser ouvidas, ainda que sem resultados até agora. Também não há divisão oficial dentro do movimento.

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