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Dia do Nordestino: “Frase de Bolsonaro retroalimenta o preconceito das elites contra o povo da região”

O Dia do Nordestino, comemorado neste sábado (8), terá celebrações não só no Nordeste, mas em várias cidades brasileiras e muito barulho nas redes sociais. E este ano com um reforço a mais: a vontade de mostrar orgulho em ser nordestino em meio a críticas preconceituosas que inundaram a internet após o primeiro turno das eleições. Especialistas afirmam que não há relação entre grau de escolaridade e qualidade do voto.

Em 2 de outubro de 2022, Bolsonaro votou no Rio de Janeiro com o que parecia ser um coleta à prova de balas sob a camiseta. Após a apuração, culpou os nordestinos pela sua derrota e os chamou de analfabetos.
Em 2 de outubro de 2022, Bolsonaro votou no Rio de Janeiro com o que parecia ser um coleta à prova de balas sob a camiseta. Após a apuração, culpou os nordestinos pela sua derrota e os chamou de analfabetos. AP - Andre Coelho
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Raquel Miura, correspondente da RFI em Brasília

Analistas ouvidos pela RFI avaliam que essa xenofobia regional, que atribui características negativas a moradores de uma região, tem como principais expoentes integrantes da elite, tem-se repetido ao longo da história e ganha contornos trágicos quando é reverberada por quem ocupa a principal cadeira política do país.

“Quando o presidente faz uma menção buscando desdenhar e desrespeita de maneira preconceituosa o povo nordestino, ele reforça também uma perspectiva preconceituosa de parte de seu eleitorado e até mesmo dá razão a uma estratégia de manter o discurso contra os nordestinos. De alguma forma, ele retroalimenta uma forma de representação política baseada no preconceito e valida esse discurso praticamente xenófobo na sociedade brasileira", disse o cientista político Cláudio André de Souza, doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia.

No último dia 2, Jair Bolsonaro liderou a contagem de votos até que começaram a entrar as urnas do Nordeste, quando foi ultrapassado por Luiz Inácio Lula da Silva. Ao justificar sua colocação em segundo lugar na primeira etapa da disputa, Bolsonaro afirmou que o adversário venceu em regiões campeãs em analfabetismo.

Não é a primeira vez que o presidente se refere de forma preconceituosa a brasileiros que vivem no Nordeste. Ele já usou expressões como ‘cabeçudo’, ‘paraíba’, ‘cabeça chata’.

"Bolsonaro se comporta o tempo inteiro na cadeira de presidente como se fosse um mero candidato, que precisa falar para sua plateia de apoiadores que não fazem parte da minoria, sem entender e praticar a importância liturgia do cargo que ele ocupa", diz Cláudio André de Souza.

Preconceito contra pobres

Além de reforçar um esteriótipo negativo que contribui para dividir o país, a declaração do presidente traz consigo outro preconceito, contra as pessoas pobres que não tiveram acesso à educação, como se elas necessariamente fossem menos aptas a escolher bons candidatos.

“Dentre as regiões do Brasil, o Nordeste é a que possui maior taxa de analfabetismo comparada a outras. Mas uma coisa não tem nada a ver com a outra. Na verdade, enquanto o partido ou aliados do ex-presidente Lula estiveram na presidência e em governos locais, houve investimentos de grande monta que mudaram bastante a Região Nordeste. É um capital político. Não tem nada a ver com analfabetismo. Tem a ver sim com investimentos na região", afirmou à RFI Leon Victor Queiroz, professor de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco.

Para Queiroz, é frágil associar formação acadêmica com qualidade na escolha política “quando a gente assiste a médicos se colocando contra vacina e a favor de medicação que a ciência provou que não tem eficácia. Então a questão da escolaridade não pode ser usada como forma de deslegitimar uma escolha política legítima".

Levantamentos mostram que Lula vence entre os mais pobres e os mais ricos. Bolsonaro lidera na classe intermediária, entre dois e dez salários mínimos.

Preconceito que vem de cima

Leon Queiroz destacou que nem mesmo o mundo acadêmico está livre desse tipo de preconceito, ao contrário, ele próprio já foi vítima. 

"Essas declarações persistem porque existe uma má formação do imaginário das pessoas sobre o que é a região Nordeste, sobre o que é a cultura nordestina. Isso não é uma coisa que vem apenas da classe política. Vem muito também da academia. Entre as pessoas mais humildes com quem convivi no Sudeste, eu nunca sofri nenhum tipo de preconceito. Nunca ouvi nenhuma piada com meu sotaque. Isso eu encontrei na universidade, entre colegas de alta escolaridade, com mestrado e doutorado. Esse preconceito transpassa qualquer tipo de classe social."

Cláudio de Souza corrobora a avaliação de que o preconceito contra os nordestinos é forte nas elites: “A visão preconceituosa validada por Bolsonaro está muito presente nas elites, de que o Nordeste representa um voto menos esclarecido, uma população mais ignorante. Mas na verdade os estados do Nordeste têm lutado por um projeto de desenvolvimento.”

A ideia de um Nordeste rico em belezas naturais, mas pobre em infraestrutura, escolas e desenvolvimento foi retratado inúmeras vezes na televisão, como em várias novelas, enquanto a vida agitada de uma metrópole moderna ficava restrita ao eixo Rio-São Paulo, o que ajudou em parte a povoar o imaginário de muita gente.

Mito da preguiça

"No pensamento social brasileiro ainda há essa perspectiva de que se tem pouco progresso por causa de povos preguiçosos e inaptos ao trabalho. Esse mito da preguiça dos nordestinos ainda encontra ecos em especial nas elites econômicas e sociais do país. Essa fala de Bolsonaro reforça isso. Mas veja, nordestinos deixaram sua região atrás de trabalho, para ganhar a vida em outro lugar diante das adversidades. E trabalharam duro”, disse Cláudio de Souza.

Leon Queiroz afirmou que o Nordeste, embora tenha uma taxa de analfabetismo maior do que outras regiões, também produz conhecimento e cultura.

"O presidente Jair Bolsonaro relacionou o analfabetismo ao Nordeste como se fosse uma região de analfabetos. Isso não é verdade. O Nordeste produz ciência de excelência. Temos uma baita produção intelectual, para além da científica. Temos indústria em vários campos, como uma formidável indústria artístico-cultural. Temos no Nordeste diversos ritmos musicais que caracterizam cada estado da região, cada mesorregião."

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