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Com apoio a Putin na Ucrânia, Argentina fragiliza princípios históricos sobre as Malvinas

Há exatamente 40 anos, começava a guerra das Malvinas entre a Argentina e o Reino Unido. Após confrontos que duraram 73 dias, a Argentina foi derrotada na tentativa de recuperar o arquipélago que os ingleses invadiram em 1833. Quatro décadas depois, a aliança do atual governo argentino com o presidente russo Vladimir Putin enfraquece a reivindicação da Argentina. E a comunidade ucraniana no país recorda que descendentes de ucranianos foram lutar nas Malvinas em defesa da Argentina.

Veteranos argentinos se reúnem em frente ao memorial da Guerra das Malvinas em Pilar, província de Buenos Aires, 7 de março de 2022.
Veteranos argentinos se reúnem em frente ao memorial da Guerra das Malvinas em Pilar, província de Buenos Aires, 7 de março de 2022. AFP - JUAN MABROMATA
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Márcio Resende, correspondente da RFI em Buenos Aires

A postura argentina de não condenar veementemente a invasão russa na Ucrânia, na tentativa de uma "neutralidade", enfraquece o argumento da "integridade territorial", princípio do direito internacional que guia a reivindicação histórica do país sobre as Malvinas, 40 anos depois da guerra contra o Reino Unido.

"O governo argentino cometeu um erro maiúsculo ao não condenar com suficiente força a grosseira invasão russa na Ucrânia em total violação do princípio de 'integridade territorial', que fundamenta as campanhas diplomáticas da Argentina desde a década de 60. A Argentina considera que o Reino Unido desmembrou o nosso território ao invadir e ocupar as ilhas em 1833", indicou à RFI o ex-chanceler argentino Jorge Faurie (2017-2019).

Ao mesmo tempo, ao não condenar enfaticamente a invasão russa, o governo argentino fortalece a alegada autodeterminação dos russos de Donestk e de Lugansk. Esse argumento usado por Vladimir Putin para invadir o território ucraniano é o mesmo que a Inglaterra usa para justificar que são os 'Kelpers' (atuais habitantes das Malvinas) os que querem pertencer ao Reino Unido, um critério que visa impedir a recuperação do arquipélago por parte da Argentina.

"Nós contestamos esse argumento inglês porque a população das Malvinas não é nativa, ela foi transplantada pelo Reino Unido para justificar a anexação. A Argentina também deveria ter defendido a integridade territorial da Ucrânia, mas a reação do governo foi ambígua e continua confusa para o mundo", critica Faurie.

"O governo argentino se esquece que, ao não criticar enfaticamente a Rússia, está invalidando os dois princípios que atrapalham brutalmente a reivindicação sobre as Malvinas", sentencia, recordando que, em 2014, a então presidente Cristina Kirchner (2007-2015) também não condenou a anexação russa da Crimeia.

A comunidade ucraniana na Argentina, com cerca de 500 mil pessoas, equivalente a 1% da população argentina, critica a pretendida "neutralidade" do governo argentino. "A comunidade ucraniana na Argentina recebe muito mal a suposta neutralidade argentina. Como imigrantes há 127 anos neste país, esperávamos que o Estado argentino nos acompanhasse neste momento terrível, até porque esta comunidade contribuiu com soldados que foram lutar nas Malvinas, que foram defender a Argentina", descreveu à RFI Pedro Lylyk, cônsul honorário e presidente da Representação Central Ucrânia na Argentina.

Durante a guerra das Malvinas, morreram 649 soldados argentinos, 255 britânicos e três civis das ilhas.

Desvio na política externa Argentina

"A fonte do poder da coalizão de governo [argentino] é Cristina Kirchner, aliada incondicional de Putin. Todo o governo se comporta com a lógica de não contradizer Kirchner, quem se identifica com o sistema autoritário de Putin para contrastar com os Estados Unidos", opina o ex-chanceler argentino Jorge Faurie.

Em dezembro passado, a Argentina e a Rússia aprofundaram a "Associação Estratégica Integral" à qual tinham chegado em abril de 2015. No passado 3 de fevereiro, em plena tensão entre Washington e Moscou, Alberto Fernández visitou Putin no Kremlin, anunciando que "está determinado a fazer com que a Argentina deixe a dependência tão grande dos Estados Unidos" e ofereceu a Argentina a Putin como "a porta de entrada da Rússia na América Latina".

"Este governo argentino tem uma inclinação pela Rússia e pela China por dois motivos: um é ideológico; o outro, financeiro. E essa aliança enfraquece a reivindicação histórica de recuperação das Malvinas", explicou o ex-vice-chanceler argentino, Andrés Cisneros (1992-1996).

"Por um lado, o governo acha que a Rússia é comunista ou anti-ocidental. O 'kirchnerismo' é antissistema e vê com carinho os déspotas de todo o mundo como Putin e Xi Jinping", opina Cisneros. "Por outro lado, este governo deixou a Argentina sem crédito internacional. Agora sonha com a Rússia ou com a China a colocar dinheiro na Argentina, assim como colocaram na Venezuela", aponta.

Condenação da Inglaterra beneficiaria a Argentina

Para Cisneros, "ao apoiar a Rússia, o governo argentino apoia a autodeterminação das províncias de Donestk e de Lugansk", mas não chega a comprometer a reivindicação argentina porque "a resolução 2065 da Assembleia Geral das nações Unidas, aprovada em dezembro de 1965, determina que o caso das Malvinas é uma situação colonial".

"É verdade que a posição do governo argentino favorece a autodeterminação na Ucrânia, mas a ONU declarou que a autodeterminação não se aplica no caso Malvinas, retirando o principal argumento dos ingleses", esclareceu o ex-chanceler.

Além de 10 resoluções da Assembleia Geral, outras 39 resoluções do Comitê Especial de Descolonização da ONU determinam que os dois países retomem as negociações sobre a soberania do arquipélago.

Outro incentivo para que a Argentina condene a invasão russa é a ênfase com a qual o Reino Unido condenou a invasão russa na Ucrânia, quando invadiu as Malvinas há 189 anos, rebatizando as ilhas como Falklands.

"O governo argentino não aproveitou a invasão russa, que parece muito com a invasão inglesa. Os ingleses dizem que nunca houve uma invasão inglesa porque as Malvinas estavam vazias, mas isso é mentira. Não estavam vazias", afirma Cisneros, para quem "o governo não está mantendo os históricos princípios argentinos". "O que o governo chama de 'neutralidade', na verdade, é uma traição do que a Argentina sempre acreditou de mais profundo", lamentou.

Reivindicação adormecida

O ex-vice-chanceler Andrés Cisneros indicou que o que mais prejudica a Argentina é a sua perda de importância no cenário mundial e a falta de bons aliados. "A Argentina perdeu o respeito do mundo para discutir e o mundo não se preocupa com as Malvinas. Se a reivindicação sobre as Malvinas fosse do Brasil, as Malvinas já seriam brasileiras. É preciso ter o PIB, o peso e o prestígio como o do Brasil para que o mundo escute", compara.

"Ao longo desses 40 anos desde a guerra das Malvinas, a Argentina tem perdido peso no contexto mundial. Não podemos ser ingênuos. As Malvinas não serão recuperadas porque tenhamos razão. O mundo não se move por quem tem razão, mas por quem tem peso, potência e bons aliados. Por isso, a reivindicação argentina está adormecida e tenho muito medo de que seja para sempre", desabafou Cisneros.

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