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Selvagens x europeus: final Brasil x Argentina pela Copa América esconde batalha cultural e política

Além do duelo entre os atacantes Messi e Neymar, o clássico sul-americano tem um histórico secular de racismo, reacendido pelo presidente argentino, Alberto Fernández, que mantém uma disputa pessoal e ideológica com o brasileiro, Jair Bolsonaro.

Neymar e Lionel Messi, um dos dois ganhará neste sábado 
 10 de julho de 2021 sua primeira Copa América no Maracanã, no Rio de Janeiro.
Neymar e Lionel Messi, um dos dois ganhará neste sábado 10 de julho de 2021 sua primeira Copa América no Maracanã, no Rio de Janeiro. Carl DE SOUZA, Nelson ALMEIDA AFP
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Márcio Resende, correspondente da RFI em Buenos Aires

Há um mês, o presidente argentino, Alberto Fernández, para se mostrar próximo culturalmente do primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, exaltou o 'europeísmo' argentino com uma reflexão que recuou 100 anos de história na rivalidade com o Brasil. "Os mexicanos saíram dos índios. Os brasileiros saíram da selva. Porém, nós, os argentinos, chegamos dos barcos. E eram barcos que vinham de lá, da Europa", afirmou Fernández, atribuindo, erroneamente, a citação ao escritor mexicano, Octavio Paz.

Ao afirmar que a origem dos brasileiros é a selva, Alberto Fernández, além de causar perplexidade dos dois lados da fronteira, reacendeu o tratamento de 'macaquitos' que os jogadores brasileiros recebiam à época em que começava a Copa América, o torneio entre seleções mais antigo do mundo.

Em 6 de outubro de 1920, quatro anos depois de a Copa América começar a ser disputada, o então jornal argentino "Crítica" retratou como 'macacos' os jogadores brasileiros que participariam de um amistoso na Argentina: "Macacos em Buenos Aires" (Monos en Buenos Aires), intitulou o jornal com uma charge em que os brasileiros apareciam com cara de chimpanzés.

Revoltados, os quatro jogadores negros daquela seleção brasileira recusaram-se a entrar em campo. A Argentina aceitou jogar com apenas sete jogadores de cada lado. A insólita partida foi vencida pelos argentinos por 3 a 1.

Décadas depois, quando se tentava apagar essa imagem, o então jornal esportivo argentino Olé, que acabava de ser lançado, publicou na primeira página: "Que venham os macacos" (Que vengan los macacos).

Era o ano de 1996. A seleção argentina de futebol acabava de se classificar para a final dos Jogos Olímpicos de Atlanta e esperaria o vencedor do duelo entre Brasil e Nigéria. O termo 'macacos' referia-se, portanto, aos dois. A Argentina perdeu a final para a Nigéria por 3 a 2.

Europeísmo x tropicalismo

Em março passado, o Mercosul completou 30 anos. Foi o resultado de uma aliança estratégica entre Argentina e Brasil, depois de décadas de um ser uma ameaça bélica para o outro. A união entre o Brasil e a Argentina tornou-se o eixo da integração sul-americana.

Ao longo desse novo período da história entre os dois países, a rivalidade por uma hegemonia na região foi trocada pelo discurso de integração, mas o sentimento de superioridade racial não parece haver terminado, pelo menos para o presidente argentino.

"O europeísmo argentino obriga a ver o tropicalismo brasileiro com profunda inveja. Aparecem, então, essa arrogância e essa soberba. É o eurocentrismo argentino diante de algo que classifica como inferior, mas que se ama como sedutor. E esse é um dos nós mais fortes da sedução brasileira sobre o imaginário argentino", disse à RFI o sociólogo argentino Pablo Alabarces, autor de 14 livros, a maioria sobre a influência do futebol na formação da identidade argentina e latino-americana.

"Aquilo que aparece como invejado é aquilo do qual se carece: sensualidade, erotismo, carnaval, negritude, dança, música, alegria. É uma lista de desejos do argentino que está oculta por baixo dessa cobertura de brancos imigrantes da Europa", acrescentou Alabarces, um dos maiores estudiosos da rivalidade entre Brasil e Argentina e um dos fundadores da sociologia do esporte na América Latina.

Jogo político entra em campo

Paralelamente, a final da Copa América entre Argentina e Brasil acontece também no campo político. A partida é outro ingrediente na disputa pessoal entre os presidentes Jair Bolsonaro e Alberto Fernández, inimigos ideológicos entre si. Bolsonaro e Fernández nunca se viram pessoalmente. Durante os últimos dois anos, só trocaram farpas, ironias e ataques mútuos.

O presidente argentino é um aliado do ex-presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, o maior rival político de Bolsonaro.

As profundas diferenças começaram em julho de 2019. Ainda como candidato, Alberto Fernández visitou Lula na prisão. Quando ganhou nas urnas em 27 de outubro de 2019, Fernández pediu a liberdade de Lula durante o seu discurso de vitória.

Por isso, Bolsonaro nunca cumprimentou Fernández pela vitória nas urnas e nem mesmo foi à sua posse, em 10 de dezembro de 2019, rompendo uma tradição entre Brasil e Argentina.

Em fevereiro passado, Alberto Fernández disse "ter plena confiança de que o Brasil reverterá tudo o que está acontecendo no país nas próximas eleições de 2022". Recentemente, passou a apoiar uma eventual candidatura de Lula contra Bolsonaro.

Na última quinta-feira (8), durante a reunião virtual do Mercosul, o presidente argentino defendeu o protecionismo, enquanto o brasileiro exaltou a importância do livre comércio, pondo em evidência os dois pólos opostos que rivalizam dentro do bloco.

Bolsonaro encerrou a sua participação na reunião com uma provocação relacionada à final da Copa América:

"Vou dizer em especial ao presidente da Argentina que a única rivalidade entre nós vai acontecer no próximo sábado, no Maracanã. Eu vou adiantar o resultado: 5 a 0”, disse Bolsonaro, sorrindo e mostrando os cinco dedos de uma das mãos.

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