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Fato em Foco

Para especialistas, "turismo social" é retórica de extrema-direita

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A corte europeia de Justiça adotou uma diretriz nesta terça-feira (11) que permite que os Estados do bloco restrinjam ajuda social aos imigrantes europeus que não procuram trabalho formalmente nos países de destino. Tudo começou quando um tribunal administrativo de Leipzig, na Alemanha, fez uma consulta à instância superior para analisar a interrupção de um auxílio à romena Elisabeta Dano, que desde 2010 estava vivia na casa de uma irmã sem trabalhar. O argumento das autoridades locais era que ela "nunca desenvolveu nenhuma relação com a Alemanha, ao qual migrou simplesmente para receber ajuda social".

Interior de uma casa, em um acampamento de ciganos nas cercanias de Paris
Interior de uma casa, em um acampamento de ciganos nas cercanias de Paris Charlie Dupiot
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Apesar de a corte não ter feito mais do que chancelar essa interpretação, a imprensa deu ampla cobertura ao que considerou uma sanção contra o que chama de "turismo social". Pedro Vianna, poeta, economista e ativista pelo direito de asilo aos imigrantes, é ele próprio um imigrante. Perseguido pela ditadura militar, veio para a França depois de uma passagem pelo Chile no início dos anos 70. E, para ele, o termo "turismo social" é um contrassenso e simboliza bem como o imigrante é feito de bode expiatório no seio da União Europeia.

"O problema atual e é o que me deixa profundamente irritado quando escuto os comentários, as reportagens, é a utilização de termos como 'turismo social'. 'Turismo social' é uma estupidez", ataca Vianna. "Isso não existe, é coisa de jornalista - não vou dizer ignorante porque eu sei que não são ignorantes - mas que estão ou consciente ou inconscientemente mal intencionados porque ninguém faz turismo social. Se alguém faz turismo social na Europa hoje em dia são as pessoas que saem dos países onde vivem para ir para países onde o imposto de renda é mais barato", afirma.

Mas como um termo tão degradante, além de incorreto, ganha ares de normalidade nas páginas de jornais como o diário econômico Les Echos, que fez uma matéria de página inteira nesta quarta-feira (12) com o título "A corte de Justiça europeia sanciona o 'turismo social'"? Para o cientista político Ricardo Marchi, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, essa terminologia típica da extrema-direita e as políticas que vêm associadas a ela têm um caminho tortuoso, mas eficiente de penetração no corpo social.

Pressão da direita

Ele não acha que diretrizes como a dessa terça-feira sejam resultado da ação direta de uma extrema-direita que cresceu nas últimas eleições europeias. Mas tem muito a ver com sua capacidade de pautar a direita moderada: "Partidos de extrema direita com bons êxitos eleitorais conseguiram pressionar os partidos conservadores dos respectivos países. Estes sim, através da União Europeia, tentaram radicalizar a própria agenda política em determinados assuntos como a imigração para poder gerir melhor depois a concorrência com os partidos de extrema direita no nível nacional".

Para ele, esse tipo de decisão que vem de Bruxelas "é fruto das contingências nacionais que os partidos de direita mainstream sofrem no nível nacional. Apesar de haver uma presença aumentada de partidos de extrema direita na União Europeia, a capacidade de pressão dentro do Parlamento Europeu não é tão grande. Eles têm capacidade de pressão nos respectivos países, onde partidos de direita (tradicionais) têm de tomar dentro de sua agenda política nacional palavras de ordem da extrema direita para tentar ganhar votos. Esse discurso mais radicalizado passa também na comunicação social, passa no discurso político comum das forças nacionais".

Não à toa, a Frente Nacional francesa foi rápida em reagir à orientação da Corte Europeia, que classificou como "a validação da prioridade nacional". Em comunicado, o deputado europeu e vice-presidente do partido, Louis Aliot, parabenizou a Corte por fazer avançar "um debate que acaba de se abrir, em um momento no qual o peso descomunal do tratamento social da imigração fica evidente para todos".

Mas, para Vianna, por trás deste discurso não há nada mais do que o velho racismo de sempre contra uma minoria histórica na Europa: os ciganos, que migram do leste, "onde essas populações são vítimas de discriminações". Vianna acredita que medidas como essa são uma cortina de fumaça para a real intenção, que é excluir essas pessoas. "Como não se pode dizer que são medidas contra tal categoria de população, porque isso seria contrário à legislação europeia, então, vem essa maneira de disfarçar as coisas dizendo: 'é uma medida geral, os Estados têm de se proteger".

Reação conservadora

Ele acredita que a melhor maneira de proteção é universalizar e equilibrar a distribuição do estado de bem-estar social. Mas isso é a contramão da tendência atual, em que as políticas sociais e os serviços públicos são cortados aos montes, usando a crise da dívida como desculpa. É verdade que os cortes só fizeram agravar a crise, aumentaram o desemprego, estagnaram economias e ampliaram a transferência maligna da renda do trabalhador para o sistema financeiro.

Vianna acha que há uma espécie de revanche capitalista em curso: "Depois que desapareceu o medo do comunismo, que tinha levado as classes dominantes a fazer uma série de concessões, esse medo desapareceu. 'Vamos recuperar tudo aquilo que concedemos' (teriam determinado essas elites)". E é esse modelo de sociedade que defende a nova União Europeia pós-crise: o velho.
 

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