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Reportagem

Diferenças legais podem dificultar prisão de egípcio acusado de ter sequestrado filho no Brasil

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Mesmo com o nome do filho agora incluído na lista de crianças desaparecidas da Interpol, o egípcio Ahmed Tarek Mohamed Fayz Abedelkalec parece não se preocupar. Em 2022, ele saiu do Brasil e voltou para o país onde nasceu trazendo o filho que teve com a brasileira, Karin Aranha, com quem foi casado. Eles viviam em Valinhos, no interior de São Paulo, mas na época ela estava na Inglaterra, onde passou 10 meses trabalhando. No fim do ano passado, uma juíza federal de Campinas determinou a prisão preventiva do egípcio. Ao saber que a Polícia Federal do Brasil encaminhou este pedido de prisão para a Organização Internacional de Polícia Criminal, Ahmed demonstrou indiferença. 

Ahmed informou à RFI que o filho está sendo bem cuidado e estudando em uma boa escola no Cairo. “O menino não está desaparecido. A embaixada do Brasil no Egito sabe onde está o menino, a comunidade brasileira sabe quem eu sou, sabe onde estou. Todo mundo sabe. Ele está comigo, está com o pai. Está tudo certo”, disse. Ahmed
Ahmed informou à RFI que o filho está sendo bem cuidado e estudando em uma boa escola no Cairo. “O menino não está desaparecido. A embaixada do Brasil no Egito sabe onde está o menino, a comunidade brasileira sabe quem eu sou, sabe onde estou. Todo mundo sabe. Ele está comigo, está com o pai. Está tudo certo”, disse. Ahmed AFP - AMIR MAKAR
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Vinícius Assis, correspondente da RFI no Egito

Contrastes legais, religiosos e culturais podem dificultar a prisão do pai que, no Brasil, é acusado de sequestro. Uma fonte do Itamaraty confirmou, informalmente, à reportagem que a discussão na Justiça do Egito atualmente é exatamente se o que Ahmed fez pode ser considerado sequestro ou não pela legislação local. A RFI conversou ainda, no Cairo, com quatro advogados egípcios sobre as leis do país em casos como este (que não é o primeiro, como revela uma uma breve busca na internet). Dois deles concordaram em ser citados na reportagem. “Dificilmente ele seria preso pelo crime de sequestro aqui”, disse o advogado George Abass, que já defendeu, inclusive, brasileiros que foram presos por outros motivos no Egito. “A menos que a Interpol solicite oficialmente”, completou a advogada especializada em Direitos Humanos Huda Nasrallah.  

A Polícia Federal do Brasil encaminhou o pedido de prisão dele à Interpol em dezembro, embora o nome de Ahmed não esteja no site oficial. Isso realmente pode acontecer em se tratando de determinados crimes ou do objetivo dos investigadores. Mas o cumprimento do mandado segue a legislação de cada país membro. No caso do Brasil, por exemplo, este tipo de pedido de prisão precisaria ser aprovado pelo Supremo Tribunal Federal para acontecer. 

 

Encontro com o pai, mas sem a criança

A RFI localizou o egípcio com facilidade no Cairo. Ahmed informou à RFI que o filho está sendo bem cuidado e estudando em uma boa escola. “O menino não está desaparecido. A embaixada do Brasil no Egito sabe onde está o menino, a comunidade brasileira sabe quem eu sou, sabe onde estou. Todo mundo sabe. Ele está comigo, está com o pai. Está tudo certo”, disse. Ahmed contou também que atualmente trabalha com venda de propriedades em Dubai e está em um novo relacionamento amoroso. 

O egípcio tem contato frequente com brasileiras que vivem no Cairo. Mulheres com as quais a reportagem também conversou e confirmaram este contato com ele, mas que é feito apenas por telefone. De acordo com o pai, o último encontro do filho com algum representante da embaixada brasileira no Cairo aconteceu quase três meses atrás e atualmente não há contato entre ele a mãe do menino, com quem se casou oficialmente no Brasil. “Ele simplesmente me cancelou da vida do meu filho, mas tudo tem um preço” disse a mãe da criança que hoje tem 5 anos. 

Ahmed prefere não revelar o endereço de onde vive com o filho e a família, alegando privacidade. Mas repete que não está escondido e que Karin sabe onde eles moram. 

Ainda segundo o egípcio, os dois se conheceram na internet (pelo Instagram) quando ele tinha 19 anos e ela 35. A brasileira, que já tinha um filho, fruto de um relacionamento anterior, veio, então, conhecer Ahmed, em 2018. Karin disse à reportagem que passou cerca de seis meses no Cairo vivendo com ele. Os dois acabaram indo juntos para o Brasil, onde ele, lutador de judô, disse que teria uma oportunidade de trabalho no interior de São Paulo como professor. 

Karin e Ahmed foram ouvidos para esta reportagem. Ao serem entrevistados, ambos trocaram graves acusações e críticas sobre o comportamento um do outro, apresentando às vezes versões diferentes sobre alguns fatos. Mas fica claro que, com o tempo, passaram a viver uma rotina de discussões e brigas. “Ele teve todo tempo do mundo para entrar na Justiça brasileira, para pedir a guarda do Adam, para fazer o que tinha que fazer da forma correta. Ele não fez”, frisou a mãe. Perguntado porquê nunca denunciou a brasileira, já que a acusa de maus tratos, o pai do menino disse que certamente não seria ouvido. “Eu vejo que a justiça brasileira não vai ficar do lado de um homem estrangeiro, egípcio”, justificou.

A saída do Brasil com o filho

Karin voltava para o Brasil confiando na mensagem que disse ter recebido do então marido afirmando que ele a buscaria no aeroporto de Guarulhos, no dia 20 de setembro de 2022. As mensagens foram trocadas enquanto ela fazia escala em Portugal. “No mesmo dia ele disse que me amava”, ressaltou a brasileira. Na entrevista, Karin contou que dois dias antes de voltar fez uma chamada de vídeo com o filho para que a criança escolhesse um dinossauro. “Ele participou da chamada e já sabia o que ia fazer”, contou. 

Enquanto isso, Ahmed já tinha encontrado um jeito de sair do Brasil com o filho, o que ele insiste em dizer que não fez ilegalmente. Afirmou que o relacionamento estava desgastado e o fato de Karin ter ido para a Inglaterra sozinha piorou a situação entre o casal. Na entrevista, o egípcio chegou a insinuar que ela fazia um trabalho “questionável”. Enquanto isso, a mãe do filho dele diz que trabalhava fazendo faxina para mandar dinheiro ao então marido e os filhos. Karin afirmou ainda que ao voltar ao Brasil encontrou o apartamento onde moravam destruído e que o egípcio desapareceu com dinheiro que mandou, além de documentos dela e da mãe da brasileira, que já faleceu. Sobre o dinheiro, ele afirma já ter gastado pagando dívidas dela e cobrindo despesas do dia a dia da casa. 

Ahmed foi de ônibus para o Paraguai, de onde embarcou para o Egito, com escala na Espanha. Ele diz ter escolhido sair por Assunção por conta do custo final da viagem, supostamente menor, o que foi considerado suspeito para autoridades brasileiras. Ao longo da viagem pela estrada, na fronteira do Brasil com o Paraguai e nos aeroportos pelos quais passaram, Ahmed afirmou ter sido questionado por policiais sobre os documentos do filho. O menino nasceu nos Estados Unidos para ter a cidadania do país, contou o pai. Foi o passaporte americano que ele usou para viajar com o filho.

Ahmed contou também que mostrou uma permissão obtida nos Estados Unidos para que o filho viajasse apenas com um dos pais. Esta autorização estava no passaporte brasileiro do menino. Foi emitida para que a mãe voltasse ao Brasil com a criança, então recém-nascida. O documento já havia vencido, mas nenhuma autoridade de nenhum país o impediu de viajar por conta disso.  

O egípcio ainda fala da ex-mulher com muito ressentimento, garantindo que o filho nem pergunta pela mãe. Mas, ao mesmo tempo, diz que Karin pode vir ao Egito quando quiser para ver a criança. 

O dinheiro das vaquinhas virtuais 

A brasileira tem feito vaquinhas na internet para conseguir dinheiro e arcar com as despesas com advogados para tentar rever o filho. Na entrevista, ela disse “não ter ideia” de quanto já arrecadou. “Tudo o que eu recebo na minha conta bancária é repassado para os meus advogados e eu tenho prova disso”, esclareceu na entrevista que foi acompanhada por dois advogados dela. 

Karin não quis dizer se atualmente está ou não no Brasil. “Gostaria de não responder, até para minha própria proteção”, justificou. Mas afirmou que se prepara para vir ao Egito em breve. Questionada sobre porquê não veio ainda, alegou “questões da justiça brasileira” e preocupação com a própria vida. “Eu sou a vítima, meu filho foi vítima, foi tirado de forma absurda, tirado da mãe. O meu objetivo é ser mãe do meu filho que foi sequestrado”, destacou, reforçando que atualmente é a guardiã legal do Adam e que se divorciou do pai, que ela prefere chamar de "genitor". 

O egípcio conta que fornecia constantemente informações e imagens da criança, mas como a mãe passou a usar este conteúdo em redes sociais em campanhas para pedir dinheiro ele decidiu parar.

Sobre a guarda da criança

Os advogados ouvidos pela RFI disseram que o assunto é complexo e há vários caminhos. Eles concordam que o melhor a ser seguido para Karin é vir ao Egito e investir no diálogo pela guarda do filho, o que ela já conseguiu no Brasil. Mas se o pai obteve a guarda da criança no Egito caberá ao Supremo Tribunal Constitucional do país tomar a decisão final, lembrando que Ahmed também é um cidadão brasileiro. “A mãe precisará provar o veredicto brasileiro perante o Tribunal egípcio. Então, ambos veredictos serão contestados e o Tribunal Constitucional decidirá qual veredicto de custódia prevalecerá”, explicou Huda Nasrallah. 

No Egito, em caso de divórcios, hoje em dia a mãe tem quase que automaticamente a guarda dos filhos do casal até que estes completem 16 anos e possam decidir com quem viver, segundo o advogado George Abass. O pai tem direito de manter contato frequente com o filho, mas pode ser preso se não respeitar que a guarda é, de fato, da mãe. A pena por desrespeitar isso está prevista no art 292 da Lei de Punição: até um ano de prisão ou multa de 500 EGP (moeda local, que equivale a cerca de R$ 80, pela atual cotação oficial). 

E como observaram advogados locais, o Egito é um país de maioria muçulmana, onde as leis seguem princípios islâmicos, o que pode acabar favorecendo o lado muçulmano do caso. O pai pode reconhecer que Karin tem a guarda do filho diante da justiça egípcia, mas exigir que ela não deixe o país dele até a adolescência do filho do casal. 

O artigo 20 da Lei de Família egípcia estabelece ainda condições para que um dos pais mantenha a guarda do filho. “A reputação é muito importante para a Justiça nesses casos”, lembrou Abass. O entendimento sobre o conceito de má reputação pode ser divergente, levando em consideração as diferenças culturais entre os dois países. “Se ela oferece risco à segurança do menino, usa drogas, tem relações sexuais”, destacou o advogado citando alguns exemplos que podem ser usados, talvez, pelo pai da criança diante da Justiça egípcia. 

Ambos advogados não conhecem as partes envolvidas neste caso e analisaram genericamente a situação. "De acordo com o que você disse, o pai está dizendo coisas sobre a reputação da mãe com provas que ele pode apresentar ao Tribunal, isso pode afetar a situação dela no caso se o Tribunal aceitar essas provas”, destacou a advogada especializada em Direitos Humanos, Huda Nasrallah, que lembrou de um caso semelhante envolvendo uma francesa e um egípcio, cerca de 10 anos atrás. 

“Se ficar claro que ela não tem condições de ter a guarda da criança, a próxima opção prevista na lei é a avó materna. Se esta também não tiver condições ou tiver falecido, a Justiça no Egito pode dar a guarda do menino para a avó paterna”, explicou George Abass, com base no que diz a lei local. 

Se por um lado Ahmed está confiante de que não será preso no próprio país, nem será separado do filho, por outro a perseverança de Karin é grande, assim como a equipe que ela diz que a apoia. “Quem deve para a Justiça é ele, não sou eu. A única coisa que eu quero é o meu filho, que não tem que ficar na mão de um criminoso. Nossa história já acabou, só que existe uma criança nisso tudo”, disse a brasileira.

Karin afirmou estar recebendo apoio de mulheres de vários países. “Pessoas que abraçaram a causa e viram o quanto eu sofri”, reforça. “Quero muito reencontrar meu filho e poder ser mãe, porque me tiraram o direito de ser mãe do meu filho, que nasceu lá nos Estados Unidos. Ficou 13 dias na UTI e eu ficava o dia inteiro naquela UTI”, disse, aos prantos. “Eu sei o quanto eu fui mãe”, disse, antes de afirmar que os pais de Ahmed são cúmplices nessa história. “Isso não vai ficar assim. Eu vou ser mãe e vou lutar pelo filho até o meu último dia”, concluiu. 

Segundo o ministério das Relações Exteriores do Brasil, o assunto está sob responsabilidade do Ministério da Justiça e Segurança Pública, mas que, através da embaixada brasileira no Cairo acompanha o caso e prestou a assistência consular cabível. E alegando a privacidade dos envolvidos, não forneceria detalhes. 

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