Acessar o conteúdo principal
Reportagem

Primeiro dicionário francês-português de 1754 abre caminho para lexicografia da língua portuguesa

Publicado em:

Quase três séculos atrás, a lexicografia (ciência da elaboração de dicionários) tratava de aproximar a França de Portugal sem intermediários. Em 1754, o padre Joseph Marques, de quem pouco se sabe, publicaria o primeiro dicionário francês-português sem que o latim servisse de entreposto. Naquela época, era assim. Toda lexicografia bilíngue entre o português e outra língua viva precisava passar pelo latim.

Capa do Novo dicionário Francês-Português do padre Joseph Marques
Capa do Novo dicionário Francês-Português do padre Joseph Marques © Captura de tela
Publicidade

Vivian Oswald, correspondente da RFI no Rio de Janeiro

Era uma espécie de chancela de correção. Seu Nouveau Dictionnaire des Langues Françoise, et Portugaise seria um divisor de águas, pois surgiu antes mesmo do nascimento da lexicografia moderna monolíngue portuguesa. O luxuoso volume de mais de 700 páginas tinha por objetivo ocupar lugar de destaque nas bibliotecas privadas e não nas escolas. Os primeiros dicionários compactos bilíngue francês-português, acessíveis para o grande público, surgiram quase um século depois.

"O contexto do surgimento dessa obra é quando se dá a chegada do primeiro-ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, que vai ser o conde de Oeiras e depois o Marquês de Pombal, nomeado pelo rei D. José I, que assumiu depois da morte de seu pai, D. João V, um momento de reformulação das ideias em Portugal, no período setecentista, em que o país se encontrava muito atrasado em relação às outras nações da Europa. Então, Pombal começou a fazer uma reforma profunda”, explica o pesquisador Alvaro Cesar de Souza, do Grupo de pesquisa Para a História da Língua Portuguesa da Universidade Federal da Bahia, e professor assistente da Universidade Tiradentes, em Sergipe.

Era uma época em que as trocas nos domínios cultural, filosófico, científico, político, econômico e artístico cresciam e o reino francês era a referência que despertava amor e ódio nos vizinhos, modelo e contra-modelo de civilização. Nesse período, segundo o professor, o português, o espanhol e até o italiano eram considerados línguas periféricas.

"Portugal sempre se autorreconheceu como a república das letras pelos seus feitos literários, mas perdeu força ao longo do tempo. E as questões social e econômica de Portugal impactaram muito a situação da produção literária. A produção de obras bilíngues teve duplo sentido: a qualificação profissional e intelectual dos profissionais em Portugal, que precisavam colocar a nação no mesmo patamar de cultura e também de ciências; e a própria educação em si como um todo”, afirmou Souza.

A publicação do dicionário francês-português saiu quase uma década antes do volume português-francês, também de autoria do padre Marques. O curioso é que as necessárias Licenças do Santo Ofício, do Ordinário e do Desembargo do Paço deste segundo volume saíram antes mesmo daquelas conferidas à publicação do primeiro. Ninguém sabe dizer ao certo por que o dicionário francês-português, editado em Lisboa, sairia antes do português-francês.

O nascimento, o fim e o renascimento deste primeiro volume tem relação direta com o ressurgimento da editora Bertrand após o grande terremoto e incêndios que o sucederam em Lisboa, em 1.º de novembro de 1755. A tragédia que mudou a história de Portugal destruiu todos os exemplares da editora. Acredita-se que há um único original remanescente, que está em poder da Biblioteca Nacional de Portugal.

Diante da destruição, em 1758, quando tentava se reerguer, a Bertrand resolveu lançar uma nova edição atualizada do disputado dicionário. É uma dessas que se encontra guardada entre as obras raras da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. Os próprios donos da editora atribuem a sua reedição e a reimpressão das gramáticas de Luis Caetano de Lima (1757) à forte procura de obras que davam acesso a um idioma hoje tão universal”, como explicava à época o prefácio da segunda edição da obra de Marques. Por essa razão, não teriam medido esforços para atualizá-la, embora fosse um livro que impusesse grandes custos para a companhia. Mas ainda assim a editora pretendia agradar aos “senhores de Portugal” que tanto apreciavam a língua francesa, como destaca o prefácio.

"A reforma do ensino superior na Universidade de Coimbra em 1772 foi muito importante e, consequentemente, muitos intelectuais vieram trabalhar em Portugal e trouxeram seu conhecimento. E essas obras, não só dicionários como gramáticas, foram muito importantes”, afirma Souza.

O volume se refere aos franceses e seu idioma como “françois" e não “français”, como hoje em dia. A tradução de "France" era “Grande Reyno da Europa”, e a de Brésil, “Reyno da América pertencente aos portugueses”. O dicionário, como não podia deixar de ser, ainda mais escrito por um clérigo, tinha preocupação com a explicação precisa de termos religiosos. O último vocábulo, por exemplo, é a palavra “Zuingliens”: hereges assim chamados, porque seguem a doutrina de Zuinglio, sobre o mistério do Sacramento do Altar, e dizem que Jesus Cristo não está realmente presente na Eucaristia”.

Ao conversar com a RFI, sobre a importância coleção de obras raras da Biblioteca Nacional, entre elas o exemplar de 1758 do dicionário do padre Marques, o diretor da instituição, Marco Lucchesi, lembrou de outro clérigo importante da lexicografia do português, que também tem vínculos com a França.

“Ano que vem fará 290 anos da morte do grande pai dos dicionários lusos. Mas ser pai de dicionário do português é reduzí-lo… Foi um grande gênio, de origem francesa, cujo nome é Raphael Bluteau. Ele escreveu um dicionário enciclopédico absolutamente fascinante, porque traz um compromisso do Século das Luzes, mas, ao mesmo tempo, tem uma espécie de sotaque barroco. Você pode ler esse dicionário como se fosse um romance. Cada verbete é uma verdadeira viagem. Ele ancorou todos os dicionários que se seguiram depois, mas com as suas forças quase que extraordinárias e místicas, porque sozinho reuniu um tesouro fabuloso com um estilo magnífico”, disse Lucchesi, que é poeta e imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL).

Filho de pais franceses, Bluteau era um religioso português

"É um monumento. É como você entrar na grande pirâmide do Egito, só que, quando você entra nessa grande pirâmide de Giza, não encontra nada dentro, enquanto você encontra um universo absoluto em Bluteau: astronomia, poesia, botânica e cada verbete em si é uma paixão”, destaca.

No acervo das obras raras da Biblioteca Nacional do Rio há ainda o Novo diccionario francez-portuguez: com a pronuncia franceza figurada composto a vista dos diccionarios antigos e modernos mais acreditados, de Francisco de Castro Freire, de 1899, e Nouveau dictionnaire francais-portugais et portugais-francais: composé sur les meilleurs dictionnaires des deux langues augmenté de plus de 15.000 mots nouveaux, de João Fernandes Valdez, do início do século XX.

A influência do francês e de outros idiomas sobre o português vêm da Idade Média. São galicismos desta época: jogral, trovador e viagem, supostamente por conta da poesia trovadoresca de origem provençal, que também teria influenciado a grafia do português. Mas isso se intensificou a partir do século XVIII.

"Obviamente que muitas palavras do francês entraram no léxico português. Elas foram absorvidas. A gente tem isso até hoje, até a estrutura gramatical. No português brasileiro, nós usamos: 'eu estou pegando o trem'. E isso tem em francês. Em Portugal, se usa 'estou a pegar o trem'. Foram questões de vocábulo. Há muitas palavras que penetraram no léxico português por conta desse intercâmbio intelectual que houve no século XVIII, a pujança da língua francesa no século XVIII, a chegada de intelectuais em Portugal e também no Brasil, oriundos da França”, diz o professor Alvaro de Souza.

Anterior ao dicionário de Joseph Marques, o professor ainda destaca um curioso achado nos seus garimpos de pesquisa: a "Grammatica de Francês ou Arte para aprender o Francês por meio da Língua Portuguesa” (1733), de Luis Caetano de Lima. O volume foi dedicado ao príncipe, filho de D. João V, o futuro rei D. José I, que nomearia mais tarde Pombal seu primeiro-ministro. “Ponho aos pés de Vossa Alteza o método de aprender uma língua estrangeira, entendendo que o discurso de um tão grande Príncipe não deve acomodar-se ao exercício da sua língua nacional”, diz o autor. “Entre as línguas que mais facilitam o comércio das gentes, merece a língua Francesa o principal lugar; e tem tão grande fortuna com as testas Coroadas, que apenas se achará Príncipe algum que despreza o seu uso", finalizou.

NewsletterReceba a newsletter diária RFI: noticiários, reportagens, entrevistas, análises, perfis, emissões, programas.

Acompanhe todas as notícias internacionais baixando o aplicativo da RFI

Veja outros episódios
Página não encontrada

O conteúdo ao qual você tenta acessar não existe ou não está mais disponível.