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Reportagem

Prato tradicional, hallaca é o símbolo do Natal na Venezuela

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O presidente Nicolás Maduro voltou a antecipar o Natal na Venezuela. De acordo com o governo, as celebrações começaram já em 1º de outubro. Mas na prática, não é bem assim. É quando o comércio coloca à venda os ingredientes para a preparação da ceia natalina, além dos enfeites alusivos à data, que o venezuelano percebe a chegada da época mais esperada do ano.

A hallaca é o prato tradicional de Natal na Venezuela.
A hallaca é o prato tradicional de Natal na Venezuela. © Arquivo pessoal Ocarina Castillo
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Elianah Jorge, correspondente da RFI Brasil em Caracas

Outro marco importante, segundo Derbys López, diretor da Fundhea, fundação dedicada à transmissão oral da História venezuelana, é o som da gaita. “O mais típico, o mais tradicional na Venezuela são as gaitas. Quando começamos a escutar a gaita, que é uma música da região de Zulia (no oeste do país e fronteiriço com a Colômbia), começamos a dizer: 'Estamos perto de dezembro'. Há gaitas que são tradicionais e outras que são muito natalinas”, explica.

"Os venezuelanos sempre estão entoando uma melodia", conta López. "O povo ama todo tipo de música", completa. Logo, é amplo o repertório para este período do ano. Porém, uma delas, 100% venezuelana, ultrapassou fronteiras. Foi gravada até em português. A obra foi incluída pela revista musical Billboard na lista de 100 melhores músicas natalinas de todos os tempos. 

“É o “Burrito Sabanero”, uma canção típica venezuelana que deu a volta ao mundo e tem sido cantada em diferentes idiomas. É sobre o menino que sobe em um burrinho rumo a Belém. É como se ele estivesse buscando o espírito do Natal”, explica Derbys.

A grande estrela

Embalados pelas músicas natalinas, aqui chamadas de villancicos, os venezuelanos se dedicam à preparação das comidas da ceia, e em especial à elaboração da hallaca – a grande estrela das noites de 24 e 31 de dezembro. 

Mais que um sabor, a hallaca evoca memórias, tradições e sensações que vão além do paladar. É o que explica Ocarina Castillo, antropóloga e criadora do curso de Antropologia Gastronômica da Universidade Central da Venezuela. 

“Do ponto de vista identitário, emocional e subjetivo, a hallaca faz parte de nossas memórias. Todos temos lembranças das primeiras hallacas que comemos na infância, do cheiro que enche toda a casa quando começam a cozinhá-la. Só de sentir o cheiro da folha de bananeira fervendo na água, já temos consciência de que estamos no Natal. Então, para um venezuelano, a hallaca é algo importantíssimo”.

A antropóloga venezuelana Ocarina Castillo explica a importância da hallaca em seu país.
A antropóloga venezuelana Ocarina Castillo explica a importância da hallaca em seu país. © Arquivo pessoal Ocarina Castillo

A hallaca parece um presente ao comensal: chega ao prato embrulhada em folhas de bananeira. Em geral as famílias se reúnem dias antes das festas, para se dedicarem ao preparo do alimento, que é feito em várias etapas. 

“A hallaca possui quatro partes, cada uma delas essencial para garantir a qualidade do todo. Em primeiro lugar, vem o cozimento da folha de bananeira, que garante a qualidade, o aroma e a textura necessária para ser a melhor embalagem do alimento. Em segundo, o preparo da massa, que é cozida, amassada e temperada com gordura, urucum e, no nosso caso, com ají dulce, que confere aroma e cor particulares. A textura, para que seja uma massa de boa qualidade, é muito particular”, detalha Ocarina.

Ingredientes para a preparação da hallaca num mercado venezuelano.
Ingredientes para a preparação da hallaca num mercado venezuelano. © Arquivo pessoal Ocarina Castillo

Difícil dizer qual a parte mais importante deste prato. Só com a massa, não existe hallaca. Entra a elaboração do ensopado para o recheio. A professora dá detalhes:

"Em terceiro lugar, está o ensopado, que é muito complicado. Só ele leva um dia para cozinhar. É preciso picar todos os ingredientes com antecedência. Gasta-se não sei quantas horas cozinhando o ensopado. Nele, tem carne de boi, de porco e de frango, além de uma infinidade de ingredientes. Em muitas áreas do país, o ensopado tem um toque doce, porque nós venezuelanos gostamos muito da combinação doce-salgado. Em algumas regiões, colocam um toque picante, ou seja, a hallaca tem todos os sabores”, explica.

O ensopado que serve de recheio para a hallaca é preparado dias antes.
O ensopado que serve de recheio para a hallaca é preparado dias antes. © Arquivo pessoal Ocarina Castillo

Mas não pense que já acabou: ainda faltam os adornos da hallaca, que variam de acordo com a região do país. Em Caracas, por exemplo, a hallaca ganha uma amêndoa em seu interior. A amarração da hallaca também é de suma importância. Imagina se depois dessa trabalheira toda e por causa de um nó mal feito a mistura saia da embalagem de folhas de bananeira e tudo vire uma gororoba dentro da panela?

Mas de onde surgiu a hallaca? Profunda estudiosa da gastronomia venezuelana, a professora Ocarina tem a resposta: “A hallaca não era necessariamente um prato de Natal, mas sim um prato especial consumido nas casas venezuelanas em diferentes épocas do ano. Mas, no final do século 18, parecia que, pelo enorme trabalho envolvido, pela dedicação, pelo tempo que leva a obter os ingredientes e a processá-los, pouco a pouco, a hallaca tornou-se um prato extraordinário para celebrar o Natal”.

A miscigenação em um prato

“Neste ponto gostaria de agregar que a hallaca é uma metáfora do que tem sido nosso processo sociocultural. Na hallaca nossas matrizes socioculturais estão perfeitamente representadas: a matriz indígena, através do milho e da massa de milho; a matriz europeia, através de uma série de ingredientes como a carne de porco e de vaca, mas também alguns temperos (passas, amêndoas, alcaparras, azeitonas, até vinho de cozinha). E o ventre africano que também tem sua influência no fato de ser a hallaca envolta em folha de bananeira”, Ocarina detalha a miscigenação que colaborou para o surgimento do acepipe e de outras tradições natalinas.

A Venezuela, ao virar um país petroleiro, atraiu muitos imigrantes do sul da Europa, sobretudo espanhóis, portugueses e italianos. 

“Essas imigrações também aportaram suas tradições natalinas ao nosso povo. Não é de estranhar que nas mesas de Natal existam panetones, ao estilo italiano, e diferentes tipos de torrões ao melhor estilo espanhol”, descreve a professora.

Riqueza à mesa 

“No século 20, a hallaca passou a ser acompanhada de uma salada bem típica da Venezuela, a salada de galinha. Junto a isso, também costumamos comer presunto grelhado ou pernil suíno”, agrega a decana.

De sobremesa tem o tradicional doce de mamão. “É um dos nossos doces mais antigos da época colonial, quando muitos doces eram comidos em calda”, diz Castillo. 

Já o rum, produzido no país, misturado com baunilha, açúcar, leite e gema de ovos dá vida ao “ponche crema”, uma bebida consumida por toda a família, explica a professora: 

“O ponche crema é bebido, principalmente, pelo setor feminino da população: as avós de 80 anos bebem enquanto fazem e quando vão comer as hallacas. De velhinhas a adolescentes. Nesse país todo mundo em algum momento brindacom um copo de ponche de creme gelado e delicioso”.   

Saborosa e cara

A ceia de Natal venezuelana é cara. A união familiar aparece não apenas na hora do preparo, mas também naquela ajudinha financeira na hora de comprar os ingredientes. Neste momento, uma dúvida paira sobre sua cabeça: como os venezuelanos fazem diante da crise que ainda assola boa parte do país? 

“Após cerca de 10 anos de uma terrível crise agroalimentar como a que vivemos, é um grande sucesso poder fazer uma hallaca no Natal. Todos nós tivemos que fazer ajustes, porque essa hiperinflação é inimiga da hallaca. Aqueles que nos anos mais críticos não conseguiram prepará-la estão se esforçando para fazê-lo novamente”, conta Ocarina.

A economia venezuelana teve leve recuperação em 2022. Organismos internacionais previram que o PIB do país teria uma alta de 10% este ano. Embora a população sinta certo alívio em relação aos anos anteriores, a inflação ainda está presente no dia a dia.  De acordo com o site Expansión Datos Macro, a variação do Índice de Preços ao Consumidor em outubro deste ano foi de 155,8%.

Há pessoas que fazem hallacas para vender. Os preços da unidade podem variar entre U$3 (R$15) e U$10 (R$50).

Mais que um alimento

De tão querida e tradicional, a hallaca virou música gravada pelo grupo venezuelano Serenata Guayanesa, em exaltação ao ambiente festivo no esse prato sinônimo de Venezuela é consumido.

E existem até ditados usando o alimento como recurso, explica Castillo: “São frases que têm a ver com a cultura popular venezuelana e nas quais as hallacas simbolizam e metaforizam o fechamento da vida, o fechamento do ano, o fechamento dos processos e também dos ciclos históricos”. 

A hallaca é mais que um alimento. A professora Ocarina explica o significado de dar ou receber esse saboroso presente envolto em folhas de bananeira. 

“Esta é uma tradição muito venezuelana: a troca de hallacas entre os familiares, entre os amigos mais próximos, entre as pessoas que mais se ama. Como todos sabemos o que a hallaca significa sentimentalmente, em algum momento, todos compartilhamos uma hallaca. Todos nós já convidamos para nossa casa alguém que não tinha o suficiente para comer, todos nós já fizemos de uma hallaca algo mais do que uma refeição, para transformá-la em um abraço”, finaliza.

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