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Eleitores vão às urnas no Líbano, entre cinismo e esperança

Quando a jornada eleitoral terminar neste domingo (15) às 19h no Líbano, o país terá concluído um relativamente longo e tenebroso capítulo de sua história. Uma geração de libaneses terá tido a oportunidade de expressar (ou não) sua vontade soberana nas urnas, seja ela a voz do medo, ou a do sonho de um futuro melhor. O Parlamento libanês coloca em jogo seus 128 assentos em uma eleição histórica, que oferece a esta antiga nação do Oriente Médio uma chance de virar a página da crise.

Eleitores libaneses começaram a votar pela manhã, sob um forte esquema de segurança. Beirute, 15 de maio de 2022.
Eleitores libaneses começaram a votar pela manhã, sob um forte esquema de segurança. Beirute, 15 de maio de 2022. REUTERS - MOHAMED AZAKIR
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Márcia Bechara, enviada especial da RFI ao Líbano

As seções eleitorais foram abertas às 7 horas locais sob forte segurança e já estão recebendo os primeiros eleitores libaneses neste domingo (15), mas o movimento ainda é calmo. Beirute, que concentra a maior comunidade católica maronita do país, deve consagrar algumas missas deste domingo ao “futuro do Líbano”.

Vale lembrar que no antigo "país do Cedro", as seções eleitorais são divididas por credos – e por sexo. Cada posto de votação recebe separadamente um tipo específico de comunidade religiosa, masculina ou feminina. A idade mínima para se votar no Líbano é 21 anos, pela atual lei eleitoral, que determina um voto proporcional e por região, com listas multiconfessionais e sem teto máximo de candidaturas. Cada região libanesa envia ao Parlamento um determinado número de deputados católicos maronitas, ortodoxos, drusos, muçulmanos sunitas ou xiitas. 

A cineasta libanesa Eliane Raheb, e os produtores de cinema Salam Yamout e Cynthia Choucair conversaram com a RFI em um café do bairro dinâmico de Gemmayza, no coração da capital Beirute, 14 de maio de 2022.
A cineasta libanesa Eliane Raheb, e os produtores de cinema Salam Yamout e Cynthia Choucair conversaram com a RFI em um café do bairro dinâmico de Gemmayza, no coração da capital Beirute, 14 de maio de 2022. © RFI/Marcia Bechara

Durante uma reportagem com o Corpo de Bombeiros que participou do resgate de vítimas após a dupla explosão no porto de Beirute, a RFI testemunhou a montagem de mesas, cadeiras e estruturas móveis dedicadas à votação deste domingo, exclusivamente para cristãos “ortodoxos armênios” – e do sexo masculino. As mulheres da mesma comunidade deverão votar numa escola a 5 quilômetros dali. 

Para William Noon, 28, voluntário da Defesa Civil libanesa que perdeu um irmão bombeiro durante a tragédia no porto e que é símbolo nacional da luta pelas vítimas, “chegou a hora de votar em massa contra as milícias do [partido militarizado, financiado pelo Irã] Hezbollah, a verdadeira fonte de todos os problemas do Líbano”.

William Noon, 28, voluntário da Defesa Civil libanesa que perdeu um irmão bombeiro durante a tragédia no porto, mostra à RFI a tatuagem com o prédio que explodiu junto com o nitrato  em agosto de 2020, nesta foto de 14 de maio de 2022.
William Noon, 28, voluntário da Defesa Civil libanesa que perdeu um irmão bombeiro durante a tragédia no porto, mostra à RFI a tatuagem com o prédio que explodiu junto com o nitrato em agosto de 2020, nesta foto de 14 de maio de 2022. © RFI/Marcia Bechara

O Hezbollah também é uma questão para o candidato independente ecologista, o cristão maronita Ziad Abi Chaker, nome forte do campo progressista libanês nestas eleições, para quem é necessário “negociar” com a antiga milícia. “Deixe-me esclarecer algo. É evidente que não é bom ter um partido que detém armas, é evidente que as armas deveriam ficar com o exército libanês. Mas a mensagem que estamos enviando para o Hezbollah é: vamos sentar para conversar desarmados, fazemos parte do mesmo país”, afirma.

Um jovem libanês muçulmano de 24 anos que não quis se identificar declarou à RFI que não vai votar neste domingo porque “são todos um bando de mentirosos”. “Não acredito em política não só no Líbano, como no mundo inteiro. São um bando de mafiosos, que só querem se servir para alimentar seus próprios interesses”, diz.

Sentado no balcão do café, Rijab, 40 anos, músico e DJ libanês, concorda: "Eu não acredito que possamos mudar nada votando. Protestamos contra esse governo e o Parlamento nos últimos quatro anos. Demos a eles a oportunidade de voltar para o mesmo Parlamento, mas eu sinto que qualquer mudança que possa acontecer no Líbano com essa máfia deveria vir das ruas e dos protestos", diz, numa referência à "Thaoura", como é conhecida no país  a "revolução" - os protestos massivos de 2019. 

Elias, 28, atrás do balcão de um dos cafés do movimentado bairro de Gemmayzeh, no centro histórico de Beirute, hesita em conversar com a reportagem, mas acaba confessando que deve votar pelas Forças Libanesas, um dos mais tradicionais partidos cristãos do Líbano, forte referência da guerra civil e uma espécie de reserva moral para muitos jovens entrevistados pela RFI. “Nas eleições de 2018 votei por candidatos independentes. Chega, agora precisamos de estabilidade”, suspira, com alguma convicção, o bartender.

Eleitores libaneses conversam com a RFI no bairro de Gemmayze, no centro de Beirute, 14 de maio de 2022.
Eleitores libaneses conversam com a RFI no bairro de Gemmayze, no centro de Beirute, 14 de maio de 2022. © RFI/Marcia Bechara

O ambiente é mais descontraído num restaurante ecológico algumas ruas para cima, ainda em Gemmayzeh, onde uma mesa com um grupo de amigos que trabalha na área de cinema troca impressões sobre as eleições de 2022. “Essa será a primeira vez que vou votar na minha vida. Eu não voto em Beirute, mas no sul do Líbano, de onde venho. Eu decidi votar porque fui muito ativa durante o começo da revolução libanesa, fiquei nas ruas durante quatro, cinco meses, e eu acho que não é coerente que os que se comprometeram com esta mudança não votem”, afirma, decidida, a cineasta libanesa Elaine Raheb.

Cécile, libanesa francófona, diz que vai votar neste domingo “porque é um dever e não teremos o direito de reclamar depois se não votarmos nessas eleições”. “Eu voto pela mudança, em gente mais jovem, que têm mais talento e que são menos corrompidas, que encarnam os desejos dessa geração”, diz sem precisar o nome de sua lista ou de seu candidato, como é comum no Líbano, onde não se declara o voto abertamente para desconhecidos.

Gérard Boutros, dono de uma empresa que imprime publicações diversas em Beirute, diz ser “contra esse mesmo governo que está há 30 anos no poder”. “Eles estragaram tudo, estamos tentando achar alguém novo, com novos valores. Não acho que haverá uma grande mudança [nesta eleição], queríamos, mas não acho que vai acontecer. Mas, pouco a pouco, pode ser, não estamos votando para o dia seguinte, mas para daqui a 10, 20 anos. Uma pequena mudança agora, outra daqui a quatro anos, acabamos conseguindo pressionar. Não se trata de uma varinha de condão, abracadabra, é algo que se fará aos poucos”, diz o libanês, que votará por um “candidato independente”.

"Por meus filhos"

“É claro que vou votar, é um direito e acho importante mostrar que existem pontos de vista diferentes dessa classe política que é a mesma há 30 anos”, reforça Cynthia Choucair, cineasta e produtora de cinema. “Apostamos nessas forças tradicionais durante 30 anos, são os mesmos que fizeram a guerra, e depois também a paz. Agora, não estamos numa situação normal, é desumano o que está acontecendo no Líbano. Nosso dinheiro se evaporou, uma classe política o roubou. Houve a explosão [do porto] do 4 de agosto, e até agora não sabemos de quem é a responsabilidade criminal. Para mim, votar hoje é algo muito importante, não so para mim, mas também para meus filhos”, atesta Choucair.

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