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O Mundo Agora

Redes sociais promovem liberdade mas também volta ao autoritarismo e à manipulação

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A garotada que criou as redes sociais no Vale do Silício era idealista. Avessa a qualquer tipo de ideologia do século XX, ela queria inventar novas relações sociais transparentes, livres, empoderando os indivíduos e não grupos particulares. A utopia implícita era a felicidade de todos comunicando com todos, construindo a vida em plena liberdade e graças às novas tecnologias. A política “à antiga” não interessava. 

Protesto contra o diretor franco-polaco Roman Polanski, acusado de estupro nos Estados Unidos em frente ao cinema "Champo", em Paris. 12/11/ 2019.
Protesto contra o diretor franco-polaco Roman Polanski, acusado de estupro nos Estados Unidos em frente ao cinema "Champo", em Paris. 12/11/ 2019. Christophe ARCHAMBAULT / AFP
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Nada de construir novas instituições ou reformar o Estado e o governo. A velha tralha do século XX seria ultrapassada pela iniciativa individual, e a capacidade de inventar novos instrumentos de interação aberta entre as pessoas. Os poderes públicos eram um empecilho que tecnologias da informação e comunicação tornariam rapidamente obsoletos. A garotada era feita de makers, de “fazedores”, com a mão na massa. Ninguém se interessava por política, partidos, instituições. A única herança que sobrava da geração dos baby boomers de maio 1968 era a velha palavra de ordem: “É proibido proibir”.

Duas décadas depois, essa utopia concreta parece andar em marcha à ré. Claro, nesse mundo conectado, os smartphones estão em toda a parte, até nos cafundós da África. Mas em vez de harmonia, essa conversa permanente e universal está criando tensões, manipulações odiosas das informações e novos obscurantismos morais. Como se essa nova liberdade estivesse alimentando uma espécie de agressividade atávica no ser humano. Em vez de acabar com as proibições, as redes sociais estão multiplicando as interdições.

Hoje, basta um número minúsculo de pessoas convencidas de que são donas da verdade para o impor novas regras de conduta a imensas maiorias. As autoridades estatais estão sob pressão permanente para interditar e organizar a vida em comum, até a própria alimentação das populações. Tudo em nome do “princípio de precaução”. A histeria alimentar fomentada por grupos na internet, vem promovendo o medo de comer qualquer coisa que eventualmente poderia ser perigosa para a saúde. E vem empurrando legislações para proibir ou taxar fortemente produtos, sem a mínima prova científica.

É claro que tabaco, álcoois, certos remédios ou substâncias utilizadas pela indústria alimentar podem fazer mal à saúde. Mas as análises científicas mostram que tudo depende da quantidade consumida e que muita coisa é inócua se for tragada com moderação. Só que hoje a intimidação em rede é tão avassaladora que os governos não hesitam mais em decidir o que é bom ou ruim para cada cidadão. Sobretudo quando o problema é colocado em termos puramente morais, onde obviamente não há muito consenso.

Nos museus, muitos administradores estão tentados retirar obras de arte das exposições se algum lobby acha que ferem a moralidade, ou a imagem de minorias raciais, sexuais, culturais, ou a dignidade da mulher. Uma verdade moral auto-definida pelos próprios lobbies. Claro todo mundo pode perfeitamente propagandear os “valores” que acha certos. O problema é que tudo isso é feito à revelia das leis e do direito.

Linchagem mediática?

Quando um prefeito tenta anular a projeção de Polanski porque o diretor é acusado de estupro nos Estados Unidos, ou um museu quase proíbe mostrar obras de Gauguin sob motivo de pedofilia, isso não tem mais nada a ver com as garantias jurídicas e a presunção de inocência que deveria beneficiar a todos. Nem com a liberdade de expressão. A possibilidade de uma verdadeira linchagem midiática está amedrontando qualquer autoridade e transformando a vida social numa guerra entre grupos de opinião, todos achando que têm sempre razão.

As redes libertárias dos pioneiros do Vale do Silício estão se transformando em campos de batalha onde todos querem proibir o que os outros pensam e fazem. A liberdade nas redes ainda existe, é claro. Mas ela também está promovendo a volta ao autoritarismo e manipulação dos Estados, junto com um moralismo ainda mais desagregador. “Proibir tudo o que é possível” parece ser o novo lema.

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