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Rússia/ espião

Inventor de veneno não tem dúvida: Rússia tentou matar ex-espião na Inglaterra

O cientista russo Vladimir Ouglev participou do programa de armas químicas desenvolvido pela ex-União Soviética nos anos 1970. Ele assistiu à criação do Novichok, o agente tóxico que, segundo as autoridades policiais do Reino Unido, teria sido utilizado para envenenar o ex-espião Sergueï Skripal e sua filha, Yulia, no último dia de 4 de março, na cidade britânica de Salisbury. Em entrevista exclusiva ao correspondente da RFI na capital russa, Daniel Vallot, o químico diz não ter dúvidas sobre o papel de Moscou no crime.

Peritos analisam banco onde Serguei e Iulia Skripal perderam a consicência, em Salisbury, na Inglaterra.
Peritos analisam banco onde Serguei e Iulia Skripal perderam a consicência, em Salisbury, na Inglaterra. REUTERS/Peter Nicholls
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Ouglev, de 71 anos, avalia como “impossíveis” as chances de provar a culpa de Moscou na tentativa de assassinato, mas todos os indícios levam a crer que Skripal e a filha receberam uma dose do poderoso produto russo. “Os serviços secretos russos não perdoam ninguém, nunca”, lembrou.

RFI: Qual foi a sua participação no laboratório no qual aconteciam as experiências do programa de armas químicas soviéticas?

Ouglev: Eu trabalhei neste laboratório de 1975 a 1990, no Instituto Nacional de Pesquisas Cientificas de Química Orgânica. No início, eu era diretor-assistente, e depois passei a dirigir o departamento de pesquisas. Nosso objetivo era desenvolver um agente 10 vezes mais poderoso que o VX americano [agente tóxico criado pelos Estados Unidos nos anos 1960].

Vocês conseguiram esse objetivo?

Se consideramos a estabilidade e as suas características, podemos dizer que os nossos agentes tóxicos chegaram a esse objetivo. Podemos inclusive dizer que eles eram, sim, 10 vezes mais eficazes que o VX. Para começar, eles eram mais estáveis. Depois, nossos agentes funcionavam assim que encostavam na pele ou quando eram ingeridos junto com a comida.

Com o VX, você podia usar uma máscara de gás e se salvar – mas não com os nossos produtos. Acho que, no total, produzimos de 200 a 300 quilos de agentes tóxicos, mas jamais passamos para uma produção em massa. No fim dos anos 1980, os dirigentes soviéticos se desinteressaram pelo programa. Eles avaliaram que as armas químicas não eram mais necessárias.

O que aconteceu com o estoque de Novichok que foi produzido nesta época?

Na maioria das vezes, ele era utilizado para experimentos. Enviávamos amostras para outros institutos para desenvolver antídodos, por exemplo. Mas a maior parte do estoque servia para testes militares. Não acho que ainda reste muito.

Você acha que, nos anos 1990, uma época na qual as autoridades russas não conseguiam guardar os estoques com segurança, o Novichok pode ter sido vendido ou roubado por organizações criminosas?

Veja bem, essa não é a primeira vez que esse agente tóxico é utilizado para fins criminosos. Em 1995, o banqueiro Ivan Kivelidi foi envenenado da mesma maneira. Na época, eu fui interrogado e até acusado de ter fabricado o veneno usado para matá-lo. Mas, no fim, foi demonstrado que Leonid Rink, um ex-colega do meu laboratório, foi quem havia vendido o produto. [Rink foi condenado a um ano de prisão pela venda do veneno. As investigações mostraram que havia traços de um poderoso agente químico no telefone de Kivelidi. Sua secretária também morreu].

Porém, para responder à sua questão, não acho que organizações criminosas tenham tido acesso direto aos estoques nos anos 1990. Na época, elas não precisavam disso: outras armas eram usadas.

Sergei Skripal, ex-coronel da inteligência russa, em foto tirada durante seu julgamento em Moscou, em  agosto de 2006.
Sergei Skripal, ex-coronel da inteligência russa, em foto tirada durante seu julgamento em Moscou, em agosto de 2006. ©Kommersant/Yuri Senatorov via REUTERS

Você acha que foi usado Novichok para envenenar Serguei e Yulia Skripal, como pensam as autoridades britânicas?

Conforme as informações que foram divulgadas, não há dúvidas: a substância utilizada para envenenar os Skripal corresponde à que nós inventamos. E não se trata de BZ [outro produto venenoso desenvolvido pelos americanos na década de 1960], como sustenta o chanceler Serguei Lavrov. Além disso, trata-se de um químico extremamente puro. É evidente que ele foi produzido por profissionais de alto nível, ou em um excelente laboratório. Pode até ser que seja a substância que nós fabricamos naquela época. Não podemos excluir essa hipótese, porque o agente pode permanecer eficaz décadas depois da sua fabricação.

As autoridades russas dizem que, se fosse mesmo Novichok que tivesse sido usado, Serguei Skripal e sua filha jamais teriam sobrevivido.

Eu mesmo quase fui intoxicado duas vezes durante a manipulação das substâncias no laboratório, e continuo vivo! É possível limpar o agente se tomamos as precauções necessárias. Acho que os responsáveis pelo envenenamento agiram de uma maneira estúpida. Ao colocar o produto na fechadura da porta, eles não consideraram que os Srkipal poderiam estar usando luvas ou entrar em casa e lavar as mãos na sequência.

Você concorda com os britânicos, que têm certeza de que a Rússia está por trás desse envenenamento?

Acho que o governo britânico jamais terá certeza disso. É impossível provar. Imagine que você seja um detetive em uma cena de crime: há um morto e impressões digitais, mas não há base de dados para comparar essas impressões. Seria necessário poder comparar a amostra utilizada nos Skripal com as do laboratório onde ela pode ter sido fabricada. É a única maneira de encontrar o culpado.

Portanto, não saberemos jamais quem utilizou o Novichok?

Por enquanto, é impossível provar, mas sendo cidadão russo, posso dizer sem hesitação que todos os traços remontam à Rússia.

Por que você tem essa convicção?

Eu não sei quais seriam as motivações deles para matar Skripal. Mas precisamos lembrar que os serviços secretos russos não perdoam ninguém, nunca. Foi assim na época da Tcheka, depois do NKVD, do KGB e, hoje, do FSB. Os nomes mudaram, mas a ideia é a mesma.

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