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Presidencial 2022: associação estimula voto em bairros afetados pelo tráfico em Marselha

A grave crise social e de segurança nos bairros da zona norte de Marselha tem sido mediatizada na reta final da campanha presidencial francesa. Em visitas à cidade do sul, candidatos de direita e extrema direita têm atribuído a violência do tráfico de drogas em bairros abandonados pelo poder público aos descendentes de imigrantes que moram nessas áreas. Uma associação local combate essa imagem fabricada, que associa a criminalidade à imigração.

"O estado nos abandona", denuncia pichação em muro de bairro popular em Marselha, no sul da França.
"O estado nos abandona", denuncia pichação em muro de bairro popular em Marselha, no sul da França. © RFI/Adriana Moysés
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Adriana Moysés, enviada especial a Marselha

O jovem de 18 anos Amine Kessaci, fundador da associação comunitária Conscience (Consciência, em tradução livre), percorre os conjuntos habitacionais insalubres da zona norte de Marselha para convencer a população a não abdicar do direito ao voto nos dois turnos das eleições, nos dias 10 e 24 de abril. 

O jovem militante e sua associação já tinham participado da primeira fase da campanha, que foi convencer os moradores desses bairros "excepcionalmente pobres", segundo classificação do Insee (Instituto Nacional de Estudos e Estatística), a se inscrever para essas presidenciais. Como o voto na França não é obrigatório, o eleitor deve se inscrever nas chamadas listas eleitorais, e o prazo para essa formalidade terminou no dia 4 de março.

Amine Kessaci, fundador da associação Consciência em Marselha.
Amine Kessaci, fundador da associação Consciência em Marselha. © RFI/Adriana Moysés

"Faz 50 anos que prefeitos de esquerda e de direita abandonaram esses bairros pouco rentáveis eleitoralmente, onde só uma ou duas pessoas votam. Isso precisa mudar", diz Amine.

Concluída esta etapa "importante", de acordo com o jovem ativista, agora é preciso insistir para que os inscritos cheguem até a urna no próximo domingo. O número de potenciais eleitores aumentou nesta eleição para 520.756 pessoas em Marselha, contra 500.107 na presidencial de 2017.

"Desde 1° de abril, nosso micro-ônibus voltou a circular para mobilizar as pessoas", disse Amine à reportagem da RFI. "Vamos lembrá-las onde ficam as seções eleitorais, os horários de votação e esclarecer as dúvidas que ainda tenham", relata. O argumento de Amine para convencer essa população excluída e desiludida a exercer o direito de voto é simples: "Se quisermos mover uma montanha, precisamos começar por pequenas pedras e votar é um começo", afirma. 

Voluntários tentam mobilizar moradores para votar

Nas redes sociais da associação, os eleitores encontram informações sobre os 12 candidatos ao Palácio do Eliseu e seus respectivos programas. Nas ações de porta-a-porta, ou quando o micro-ônibus estaciona em frente a um imóvel, Amine e outros ativistas do coletivo discutem com os moradores as repercussões da disputa política.

Apesar da pouca idade, Amine é admirado e respeitado nos bairros da zona norte de Marselha, inclusive entre os adolescentes envolvidos em redes de tráfico. Ele ganhou projeção nacional ao se encontrar com o presidente Emmanuel Macron quando o chefe de Estado esteve na cidade, em setembro passado, para apresentar um plano estatal de investimentos de € 3,6 bilhões para reformas de renovação de escolas, conjuntos habitacionais, hospitais e ampliação da rede de transportes, deficiente na zona norte de Marselha.

Amine pôde explicar ao presidente as inúmeras dificuldades enfrentadas pelas famílias e o que sua associação propõe como possíveis soluções. A maturidade do rapaz surpreendeu o presidente da República e a mídia francesa. 

Morte violenta de irmão inspira ação política 

Como muitos jovens de sua geração, Amine decidiu fundar essa associação em 2020, com o objetivo de promover ações ecológicas em seu bairro. Ele foi criado em uma "cité" (conjunto de edifícios de moradia popular) de Frais-Vallon, no 13° distrito de Marselha. Por falta de manutenção, muitas "cités" enfrentam sérios problemas de insalubridade. As famílias convivem com ratos e baratas, que também infernizam alunos e professores nas escolas. 

Sete meses após fundar sua ONG, Amine viveu uma tragédia familiar. O irmão mais velho da família foi encontrado morto, com o corpo carbonizado dentro de um carro ao lado de um amigo, no dia 29 de dezembro de 2020. Os dois homens tinham 22 anos e viviam do tráfico de drogas.

Como muitos jovens do bairro, o irmão de Amine abandonou a escola cedo e não tinha qualificação profissional. Ele deixou a mulher e uma filha pequena. Essa tragédia pessoal reforçou o engajamento de Amine em projetos sociais. 

Hoje, os voluntários da associação Consciência acompanham famílias em situação de precariedade, fornecendo auxílio jurídico, administrativo, financeiro e psicológico. "Queremos trabalhar para a emancipação dos jovens, fazê-los entender que eles podem mudar a realidade desses bairros abandonados pelo poder público", diz. "Com a morte do meu irmão, eu percebi que as famílias que perdem parentes para o tráfico de drogas não são acompanhadas psicologicamente. Ninguém veio nos ver para saber se precisávamos de ajuda", conta. "E estávamos traumatizados", recorda com emoção na voz. 

Estado falha nas políticas de prevenção ao tráfico

Uma das principais reivindicações da associação é a adoção de ações preventivas contra o tráfico de drogas nas escolas, onde crianças têm sido recrutadas desde cedo. "Quando eu era pequeno, ficávamos sabendo de um homicídio relacionado com o tráfico que aconteceu à meia-noite, às 4h da madrugada, em algum lugar distante de casa. Hoje, matam ao meio-dia, em qualquer lugar, até do lado de escolas", constata.

Os incidentes com balas perdidas que atingem moradores na rua ou dentro de casa também aumentaram em Marselha.  

Esta realidade social que é fruto de um sistema político clientelista que perdurou na cidade por mais de meio século, prejudicando o desenvolvimento do município, hoje é explorada pelo populismo de direita.

Zemmour expulso de clube de Zidane

O polemista Éric Zemmour, um dos candidatos da extrema direita às eleições presidenciais, esteve duas vezes em Marselha durante a campanha. No último sábado (2), o fundador do partido Reconquista! visitou uma feira de produtos usados do 15° distrito e, com a virulência de sempre, atacou os moradores. 

"Estão vendo isso? Vamos limpar tudo isso, fisicamente, limpar essa gente que faz esse tráfico, deportar essas pessoas (...) porque a maioria são clandestinos, e não importa qual seja a nacionalidade deles, de qual país eles venham", disse Zemmour aos jornalistas que o acompanhavam. 

Na visão propagada por Zemmour, "Marselha se desintegrou com a imigração". "Se não fizermos nada, toda a França será como Marselha, uma cidade em parte desintegrada e islamizada", afirmou o candidato, apontando para seus bodes expiatórios prediletos: os muçulmanos descendentes de ex-colônias francesas no norte da África.

No mesmo dia, não muito distante dali, Zemmour foi expulso de um clube fundado pelo ex-campeão francês de futebol Zinédine Zidane, nascido na "cité" La Castellane, importante ponto do tráfico de drogas em Marselha. 

Argelinos e comorianos

A cidade mediterrânea tem uma grande população de origem argelina e comoriana. Os primeiros imigrantes da Argélia desembarcaram em Marselha em 1907, recorda o antropólogo e sociólogo Michel Peraldi, autor do livro "Sociologia de Marselha". Peraldi refuta a ideia de que novas ondas de imigração estejam chegando à localidade. "Isso acabou nos anos de 1960, Marselha tornou-se um município pobre devido à redução de atividade no porto e não atrai mais ninguém. É uma cidade em crise econômica, uma cidade administrativa", insiste Peraldi. 

Mesmo tendo baixa rentabilidade eleitoral para os políticos, os candidatos conservadores costumam ir a Marselha para afirmar suas políticas de segurança e combate à criminalidade.

Com menos de 10% de intenções de voto, Valérie Pécresse, do partido da direita tradicional Os Republicanos, visitou bairros da zona norte na quinta-feira passada (31) e defendeu uma política de "impunidade zero" contra o tráfico de drogas.

Acompanhada por vários seguranças, ela esteve às 23h em duas "cités" do 15° distrito, onde um homem foi ferido a tiros no domingo anterior. Pécresse contava que sua equipe de comunicação pudesse filmar jovens em pontos de venda de drogas, mas quando chegou ao local encontrou ruas desertas. Ela lamentou, mesmo assim, a impotência do Estado diante dos poderosos traficantes que controlam o acesso dos moradores a suas casas.

Marine Le Pen, do partido Reunião Nacional, também percorreu a zona norte de Marselha em novembro do ano passado. A candidata nacionalista, segunda nas pesquisas de intenção de voto atrás do presidente Emmanuel Macron, embarcou em um carro de polícia sem identificação para fazer uma blitz em três bairros corroídos pelo tráfico. Na época, ela afirmou que era necessário "declarar guerra às drogas". Em nenhum instante ela saiu do carro nem conversou com habitantes.

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