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França/Eleições

Cidade francesa pioneira na agricultura urbana orgânica é referência nas eleições municipais

Imaginem uma cidade industrial na periferia de uma metrópole portuária, marcada por uma forte taxa de desemprego e pela pobreza, que decide atenuar as dificuldades sociais de sua população trilhando o caminho de uma “revolução verde”. Bem-vindo a Grande-Synthe, município de 23.000 habitantes na periferia de Dunkerque (norte da França), um laboratório avançado de políticas públicas ecológicas.

Vista aérea da cidade de Grande-Synthe.
Vista aérea da cidade de Grande-Synthe. @Jean-Louis Burnod/ Happyday
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Enviada especial a Grande-Synthe

Eleita primeira capital francesa da biodiversidade, em 2010, a prefeitura de Grande-Synthe aplica, desde 2011, uma política de “transição” para uma economia solidária e circular, ancorada na sustentabilidade. Os projetos abrangem vários setores e foram inspirados no movimento iniciado pelo britânico Rob Hopkins, um professor de permacultura que lançou em Totness, na Inglaterra, o conceito de “cidades em transição”, visando a redução das energias fósseis implicadas no aquecimento global.

A ideia de criar ambientes humanos sustentáveis e produtivos, em equilíbrio e harmonia com a natureza, seduziu o francês Damien Carême, que foi prefeito ecologista de Grande-Synthe durante 18 anos (2001-2019). No ano passado, Carême foi eleito deputado no Parlamento Europeu pelo partido Europa Ecologia Verdes (EELV). Hoje, ele leva sua experiência para projetos na esfera do bloco.

A transformação de Grande-Synthe foi determinada por imperativos econômicos, sociais e climáticos. As multinacionais da siderurgia e petroquímica, que promoveram o desenvolvimento da cidade na década de 1960, fecharam milhares de postos de trabalho com o progresso tecnológico e a intensificação da globalização a partir da década de 1990.

O desemprego fragilizou o município, atingindo 28% da população em 2019, contra a média nacional de 8,1%. Atualmente, a taxa de pobreza afeta 30% dos moradores, ou seja, pessoas que sobrevivem com menos de € 867 por mês; 43% são inativos.

Para abrandar esse quadro, o poder público municipal priorizou a criação de novos empregos que não dependam de decisões tomadas no exterior. Os fundos públicos passaram a ser utilizados com esta finalidade. A cidade também quer estar preparada para enfrentar outras crises que virão. A prefeitura optou por um projeto local de resiliência, de preservação do meio ambiente e dos recursos naturais visando a autonomia de seus moradores.

Aposta na produção urbana de alimentos orgânicos

Há nove anos, o Conselho Municipal de Grande-Synthe baniu os produtos fitossanitários da manutenção de praças, jardins e parques públicos. Para favorecer o circuito curto de abastecimento, a prefeitura criou fazendas, jardins e hortas urbanas, sem tratamento químico nas plantações. Onde é possível trocar cimento por terra, privilegia-se o verde.

O município serve alimentação 100% orgânica em todas as escolas da rede pública e a um preço módico da refeição, que varia de € 0,45 a € 1,85. O valor pago pelos pais é definido de acordo com a renda familiar. As crianças crescem com uma alimentação saudável e a saúde protegida de perturbadores endócrinos presentes nos agrotóxicos.

A dona de casa Sandra Morvan, grávida do terceiro filho, aprova essa política. “Temos de saber o que estamos comendo. Com as hortas, a gente economiza na alimentação e a prefeitura ainda nos ajuda dando sementes e cursos para aprendermos a cultivar nossos jardins. É muito agradável participar de uma horta comunitária, é um momento de troca com as pessoas”, diz a moradora.

Educação para a autonomia

A “Universidade Popular”, um espaço de democracia participativa, organiza conferências sobre saúde (alimentação, perturbadores endócrinos, vacinação) e sustentabilidade (economia em circuito curto). Agentes municipais oferecem oficinas para ensinar crianças e adultos a fazer compostagem, fabricar produtos naturais de limpeza, higiene pessoal e até tinta de parede. O local possui um jardim de plantas medicinais, onde os moradores aprendem a utilizar esses recursos.

O coordenador Julian Mierzejewski conta que organiza 80 oficinas por ano e debates com a sociedade civil para educar as pessoas à autonomia. A “universidade” fica aberta diariamente, à disposição da população para informações.

O município desenvolveu vários tipos de horta urbana, reservando praças e terrenos vizinhos de conjuntos habitacionais para o cultivo de frutas e legumes. Em vez de um projeto paisagístico, de função exclusivamente estética, as pessoas são incentivadas a produzir uma parte de sua alimentação ao lado de casa.

Em um dos seis jardins comunitários de condomínios, a reportagem da RFI encontrou o aposentado português António S., 84 anos, há 45 anos morador de Grande-Synthe. Ele regava as hortas dele e da filha, embaixo das sacadas dos apartamentos onde moram. “Eu sempre gostei da terra e faz bem para a saúde se alimentar com produtos orgânicos; adubo não é bom”, disse, sorridente.

As hortas comunitárias de Grande-Synthe representam uma economia no orçamento das famílias de baixa renda e uma atividade de lazer. Para ter acesso a uma parcela de terra, os interessados se inscrevem na prefeitura, que fornece a orientação técnica para o cultivo de frutas, legumes, temperos e cereais sem agrotóxicos. As sementes são doadas ou distribuídas por associações que têm nomes sugestivos, como “A floresta que se come” (La forêt qui se mange).

Um dos principais responsáveis pela transformação de Grande-Synthe é o jardineiro-chefe Yves Castecker, diretor do Departamento de Espaços Verdes do município. Há 46 anos, ele atua para preservar os recursos naturais da cidade e coordena a equipe de 83 jardineiros municipais. Ao longo do “Cinturão Verde”, um corredor de mata que margeia toda a zona norte, ele organizou a plantação de 160 variedades locais de arbustos e árvores frutíferas para os habitantes se servirem gratuitamente o ano inteiro.

“Esse bosque foi concebido para ter dupla função: esconder a rodovia que fica entre a zona industrial e um bairro residencial e servir de local para os moradores praticarem exercícios. Selecionamos flores e árvores de diversos tamanhos que dão frutos ao longo das estações do ano. Os moradores podem colher maçãs, peras, nozes ou castanhas, por exemplo. As plantas também atraem insetos, aves e animais. Criamos a cadeia alimentar com predadores naturais e, ao mesmo tempo, conectamos as pessoas com a natureza”, conta o jardineiro-chefe com a paixão de quem ajudou a transformar a paisagem. Hoje, Grande-Synthe oferece 127 metros quadrados de área verde por habitante.

Prêmios de sustentabilidade

Os resultados dessa iniciativa original e humana são uma cidade com 12 prêmios de sustentabilidade, entre eles a de capital da biodiversidade (2010), um grande prêmio nacional de árvores, os títulos de município sem agrotóxicos e território sem perturbadores endócrinos, prêmio da energia cidadã, entre outros. Todo mês, as autoridades locais recebem delegações de outras regiões da França e do exterior interessadas em conhecer os progressos conquistados.

Jérôme Levis, engenheiro de obras públicas e diretor técnico dos serviços municipais, conta que a primeira iniciativa concreta de trazer a natureza para dentro de Grande-Synthe vem dos anos 1970. O então prefeito René Carême, pai de Damien, transformou uma jazida explorada na construção de uma rodovia adjacente num grande parque regional. Ele mandou plantar no local 100.000 árvores ao redor do lago artificial do Puythouck.

“A ideia era dar um pulmão verde aos operários expostos às substâncias tóxicas no polo petroquímico e siderúrgico”, conta o engenheiro. ”Temos uma trajetória de 50 anos de incentivo à biodiversidade em diferentes fases de ação, sempre na vanguarda em relação ao que se fazia no restante da França”, resume Levis.

Energia limpa

A questão da transição energética também tem sido tratada pelo município numa ótica de ecologia social. Em 2013, a cidade iniciou um projeto de modernização da iluminação pública que consumia muita energia e pesava no orçamento municipal. Depois de fazer uma experiência bem-sucedida num bairro com lâmpadas do tipo Led, mais econômicas e de luminosidade ajustável aos horários de maior ou menor necessidade, a prefeitura trocou os 5.000 postes de luz da cidade pela tecnologia mais moderna. A substituição custou € 5 milhões aos cofres municipais, mas gerou uma economia anual de € 300.000 no consumo de energia e de € 150.000 na manutenção da rede.

Com os recursos poupados neste programa e outros projetos de energia limpa (carros elétricos na frota municipal; abastecimento em biogás para 60% do consumo da cidade; captação de calor dos altos-fornos da siderúrgica AcelorMittal para transformação em energia destinada ao aquecimento doméstico no inverno), a prefeitura criou o programa “Mínimo Social Garantido” (MSG).

Trata-se um complemento de renda para os pobres, ou seja, para pessoas ou famílias que sobrevivem com menos de € 867 por mês. O MSG não é um programa de renda mínima, apenas um complemento financeiro para resgatar o morador da pobreza. Segundo o diretor do Centro Municipal de Ação Social, Christophe Madacsi, que pilota o plano criado em maio do ano passado, 473 famílias se beneficiaram dessa ajuda até 31 de dezembro. Elas passaram a dispor, em média, de € 1.270 mensais. O custo global do programa foi de € 604.300 em 2019. Mas a ajuda social municipal não é um cheque em branco. Um assistente social acompanha individualmente cada caso para analisar que tipo de formação a pessoa pode fazer para encontrar um emprego. A concessão do MSG é reavaliada a cada 6 meses.  

A política social adotada pelas autoridades municipais faz com que Grande-Synthe tenha apenas dois sem-teto. “Bem conhecidos dos serviços municipais”, assinala Madacsi. Ninguém é expulso de seu apartamento porque não consegue pagar o aluguel, diz com uma ponta de orgulho o diretor do Centro Municipal de Ação Social.

A agente educacional Hamida Kesraoui, viúva e mãe de quatro crianças, atualmente desempregada, é beneficiária do programa social “mínimo garantido” desde maio passado. “Com essa ajuda, eu posso levar minhas crianças num parque de diversões de vez em quando, ou para comer numa lanchonete, o que elas veem os amigos fazer”, explica. Desde a morte do marido, o orçamento familiar ficou apertado, mas a moradora tem participado das atividades da “Universidade Popular” para aprender a realizar economias. “Eu pagava € 125 por mês de eletricidade e gás, mas, como consumi menos, tive um reembolso de € 145 no ano passado”, relata animada.

Moradia popular

O parque habitacional, composto 60% de moradia popular, tem sido renovado com a ajuda de programas do Estado. A prefeitura não hesita em demolir edifícios antigos, que consumiam muita energia, para erguer novas construções que geram mais energia do que consomem.

“As propostas na área da ecologia não podem ser punitivas. Precisamos colocar em prática medidas de ecologia social, este é o segredo: aplicar medidas que fazem bem aos cidadãos”, defende o prefeito socialista Martial Beyaert. Ele assumiu o cargo em julho do ano passado, com a eleição de Damien Carême para o Parlamento Europeu, e enfrenta no próximo domingo (15) três adversários no primeiro turno da eleição municipal: Olivier Berthe, do partido Europa Ecologia Verdes (EELV), apoiado por Carême; Dany Wallyn, da sigla A França Insubmissa (LFI); e o candidato Fethi Riah, um opositor histórico do ex-prefeito. Nessa votação o que está em jogo é o legado de Carême, que ganhou desafetos depois de construir um centro de acolhimento de migrantes, no auge da crise de 2015.

O ex-policial municipal Joel Angier, aposentado, mora em Grande-Synthe há 55 anos. “Quando cheguei à cidade só havia campo em volta da minha casa. Hoje, temos bairros residenciais, prédios de moradia popular, um lago, muitos espaços verdes e de lazer, escolas, academias e centros esportivos municipais, uma iluminação pública moderna, tudo mudou. Acho que os moradores reconhecem os progressos e, por isso, não querem sair daqui”, opina o ex-policial. Para o próximo mandato, Angier gostaria de ver melhorias em torno do lago, como a construção de banheiros públicos.

O casal Marlyne e Joseph G., também aposentados, reclama mais segurança no trânsito. “A polícia municipal não repreende os motoristas que dançam em cima dos carros na saída de casamentos”, critica Marlyne. O comentário deixa escapar uma certa animosidade contra os moradores de origem árabe, que têm esse hábito.

Transporte público gratuito

Desde setembro de 2018, os habitantes de Grande-Synthe dispõem de transporte público gratuito, no programa criado para a comunidade urbana de Dunkerque e suas 21 cidades-satélites.

“Essa medida gerou um aumento de poder aquisitivo para as pessoas, incrementou os trajetos intermunicipais, favorecendo o comércio, sem gerar mais poluição. Pelo contrário: muita gente está vendendo o segundo carro para por não ter mais necessidade de usá-lo”, destaca Beyaert.

Os ônibus articulados, movidos a gás natural, são confortáveis, limpos e circulam com frequência. Eles são usados por pessoas de todas as idades, mas representam uma enorme liberdade para os jovens, que ainda não trabalham e podem fazer atividades esportivas e culturais sem acrescentar uma despesa ao orçamento familiar.

Envolvimento dos cidadãos

Um dos segredos da adesão dos moradores de Grande-Synthe ao projeto de transição ecológica é o apoio às ONGs e associações voltadas para projetos sustentáveis, esportivos e culturais. Além de colocar 60 espaços associativos à disposição da população, o orçamento participativo reserva € 7 milhões para os coletivos civis. A vitalidade dessa rede é tamanha que Grande-Synthe tem 380 associações ativas. Elas passam por um controle de contas e uma avaliação de utilidade pública a cada dois anos.

O arquiteto, geógrafo e urbanista Arnaud Houel, diretor do Polo de Urbanismo e Desenvolvimento do município, aponta uma série de atividades econômicas sustentáveis que ainda têm espaço para crescer na cidade: coleta de lixo orgânico para compostagem, restaurantes e supermercados solidários, confecção de roupas com tecidos reciclados, reciclagem de material de construção, entre outras.

Grande-Synthe é um laboratório a céu aberto. “Somos uma cidade protetora, mesmo com as dificuldades do desemprego, os habitantes não querem sair daqui”, nota o prefeito com satisfação.

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