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O Mundo Agora

França: Internet acabou com a tradição de respeito à vida privada dos políticos

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De repente, a classe política francesa acordou, unânime. Todos se sentiram ameaçados. O candidato do partido do governo nas eleições municipais de Paris, Benjamin Grivaux, teve que se demitir depois de um vídeo sexual íntimo que apareceu nas redes sociais. Golpes políticos sórdidos não são de hoje. Mas a cultura e o jornalismo franceses sempre respeitaram a vida privada e sexual das pessoas conquanto não descambem para registro penal. Só que nos tempos da Internet, não dá mais para esconder.

Benjamin Griveaux se encontrava em terceiro lugar nas pesquisas, atrás da prefeita socialista Anne Hidalgo e de Rachida Dati, do partido de direita Os Republicanos (LR).
Benjamin Griveaux se encontrava em terceiro lugar nas pesquisas, atrás da prefeita socialista Anne Hidalgo e de Rachida Dati, do partido de direita Os Republicanos (LR). MARTIN BUREAU / AFP
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No caso de Griveaux, um estranhíssimo artista russo refugiado na França recebeu um vídeo pornográfico que o então ministro havia enviado há dois anos atrás para uma mulher amiga perfeitamente cúmplice, e jogou nas redes para, diz ele, “lutar contra a hipocrisia”. Esse tipo de “vingança pornográfica” – proibida pela lei francesa – é relativamente comum nas democracias anglo-saxônicas. Mas na França causou um terremoto.

Comentaristas, televisões, rádios, jornais e redes sociais só falam nisso. Será que o moralismo dos norte-americanos chegou na terra da libertinagem gaulesa? E quem hackeou a conta cifrada de Grivaux e entregou o vídeo para o russo? O presidente Emmanuel Macron, não acusou diretamente os serviços de inteligência de Moscou, mas na conferência de segurança internacional de Munique voltou a repetir claramente que os russos continuavam a desestabilizar as democracias ocidentais pelas redes sociais.

A embaixada russa em Paris insinuou que poderia ter sido uma parte do establishment francês descontente com as últimas aberturas feitas por Macron a Vladimir Putin. Alguns até trataram Grivaux de imbecil. Como é possível que um responsável político desse calibre possa enviar vídeos íntimos num mundo dominado pelas redes sociais onde nada desaparece e tudo vem a público um dia?

Na verdade, a classe política está descobrindo que nenhum político pode sobreviver num mundo organizado em torno das redes sociais se não foi um santo asceta desde pequenininho. Mas como não há ninguém sem pecado escondido, o preço individual a pagar para entrar na política este se tornando exorbitante.

As pessoas do bem não estão mais a fim de enfrentar essa permanente máquina de lavar roupa suja que pode destruir em poucos minutos a vida de qualquer um. Tudo isso é um tiro de morte na democracia representativa.

A política vira prato cheio para regimes e partidos autoritários, onde tudo é golpe baixo, e ganha quem não tem escrúpulos em utilizar a violência e a mentira sistemáticas. Pior ainda: hoje é possível produzir até falsos vídeos comprometedores.

Fenômeno perigosíssimo

Para tentar lutar contra esse fenômeno perigosíssimo para as liberdades públicas, políticos e juristas querem regulamentar as redes e reprimir pesado quem lança “fake news” ou ataca a vida privada das pessoas. Só que já é tarde. A democracia representativa tem poucas chances de prosperar num mundo que impinge uma transparência total nas relações humanas, até as que são perfeitamente legais.

Qualquer fulano com um smartphone se sente empoderado para reclamar, xingar e exigir, a qualquer hora, a demissão dos representantes que não lhe apetecem. Qualquer legitimidade política ou até moral está desaparecendo no vendaval das redes. É como se os internautas se atribuíssem uma forma de poder legislativo fora de qualquer processo eleitoral.

A França viveu isso na carne com as manifestações sociais permanentes contestando a legitimidade do governo e até o programa do presidente Macron aprovado por ampla maioria dos votos na eleição de 2017. Só que essa função legislativa que a multidão conectada se arrogou só pode promover a violência verbal e física daqueles que acham que cada um também deve ter um poder executivo. E que o uso da força e da intimidação é legítimo para qualquer cidadão.

A questão hoje não é saber como a democracia representativa vai controlar as redes para sobreviver. O problema é inventar um novo tipo de regime democrático, que possa garantir as liberdades públicas e individuais, adaptado aos tempos da Internet.

 

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